Tema do Mês

Que tudo mais vá pro inferno: a explosão da Jovem Guarda

PARTE 2 - TEMA DO MÊS de AGOSTO!

sexta, 14 de agosto de 2020

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Em dezembro de 1965, ninguém ficou imune aos versos da nova música de Roberto Carlos, que abria o lado A do seu então recém-lançado LP “Jovem Guarda”, homônimo ao programa da TV Record:

“Só quero que você me aqueça neste inverno
E que tudo mais vá pro inferno!”

Quero que vá tudo pro inferno” foi um estrondo nacional, a gota d´água para transformar o programa que estreara meses antes, em agosto, em um dos mais relevantes fenômenos de consumo de massa da história do Brasil. 

A partir daí, o país inteiro ficou conhecendo aquela nova tendência da música brasileira, em que jovens cantores empunhavam guitarras e cantavam desinibidamente sobre amores, sonhos, desejos e frustrações com leveza, simplicidade e bom humor. E se Roberto Carlos era, até então, um jovem de renome razoável, tornou-se, a partir daí, uma das grandes estrelas da música nacional. Foi logo coroado o “Rei da Juventude” - e não saiu do trono até hoje, 55 anos depois. 

Enquanto movimento, a Jovem Guarda provocou uma série de transformações na cultura brasileira, em diversos níveis: na Comunicação, no comportamento e, claro, na música.

No início de 1966, Roberto Carlos foi coroado “Rei da Juventude” no Programa do Chacrinha pelas mãos de sua mãe, Lady Laura (Foto: Reprodução)

É uma brasa, mora! 

A história da Jovem Guarda se confunde com a própria história da televisão no Brasil. Na época, as emissoras ainda engatinhavam no desenvolvimento daquela nova linguagem, e o novo programa musical da TV Record ajudou a rejuvenescer significativamente aquele formato. Ainda era comum àquela época um certo formalismo e uma pompa herdados da Era do Rádio. A linguagem era comedida, muitas vezes rebuscada, e os artistas costumavam se apresentar de smoking ou vestidos de gala. 

A Jovem Guarda, portanto, ajudou a naturalizar a coloquialidade nesses programas de TV. As performances estáticas deram lugar a apresentações eletrizantes. Os ternos foram substituídos pelas calças boca de sino, anéis, cordões de ouro, casacos de pele e chapéus extravagantes. 

O linguajar formal foi substituído por gírias que logo caíram na boca do povo. “É uma brasa, mora”, “carango”, “papo firme”, “broto”, “pão” foram alguns dos termos logo incorporados pela juventude e até alguns adultos. 

O estilo da Jovem Guarda foi comercializado e virou moda (Foto: Propagandas Históricas/Reprodução)

É proibido fumar!

Em relação à geração do rock brasileiro dos anos 1950, a turma da Jovem Guarda foi bem mais ousada. Nas letras, no visual e no comportamento. 

Um bom exemplo é a diferença entre Celly Campello (na época já aposentada) e Wanderléa, apontada por muitos como sua “sucessora”. Enquanto Celly correspondia a um ideal de feminilidade típico dos “anos dourados”, que prezava pela docilidade e bom comportamento, Wanderléa, apesar do apelido de “Ternurinha” e dos modos afáveis, quebrou diversos paradigmas quando instituiu o uso da minissaia. Chocou uma grande parcela do público conservador, que torceu o nariz, e se tornou o protótipo da garota “prafrentex” dos anos 1960, que já começava a reivindicar um uso libertário do próprio corpo. 

Wanderléa, a “garota papo firme” dos anos 1960. (Foto: Reprodução) 

A alusão ao ato transgressor, inclusive, era um dos temas mais recorrentes nas canções da Jovem Guarda. “Rua Augusta” (Hervé Cordovil), gravada por Ronnie Cord em 1964, já sintonizava essa influência da “juventude transviada” da época, personificada por ícones da cultura pop com Marlon Brando e James Dean. A música é o relato de um jovem destemido que não gosta de respeitar as leis de trânsito e corre com seu carango a 130 km/h, com três carburadores, “todos três envenenados”. 

Já estava presente nessa letra uma característica que marcaria toda a produção da Jovem Guarda: a utilização do carro como elemento simbólico do desejo da ascensão social ou como instrumento de paquera, que iria se repetir também em outras músicas que reforçam o arquétipo do “machão” destemido e conquistador. São exemplos de canções dessa safra: “O bom” (Carlos Imperial), cantada por Eduardo Araújo (“Ter muitas garotas para mim é normal/ Eu sou o bom entre os Dez Mais”), “O tremendão” (Marcos Roberto e Dori Edson), que rendeu o apelido a Erasmo Carlos (“Penteio o cabelo/ E compro uma briga/ Só por causa de esbarrão”), e “Lobo mau” (Hamilton di Giorgio), sucesso de Roberto Carlos em 1965 (“Eu pego o meu carro e começo a rodar/ Eu tenho mil garotas, uma em cada lugar”).

Erasmo Carlos ganhou o apelido de “Tremendão” e personificou o machão destemido da juventude transviada (Foto: Reprodução)

A paquera, isto é, o desejo sexual, também aparecia em muitas letras, que para o pesquisador Paulo de Tarso C. Medeiros, evocam “as primeiras manifestações do corpo como forma de prazer”. “Menina linda”, por exemplo, versão de Renato Barros para “I should have known better”, dos Beatles, gravada pelo conjunto Renato e Seus Blue Caps, é um convite à perda da inocência e, consequentemente, da virgindade, que ainda era um tabu naquela época: “Deixa essa boneca, faça-me o favor/ Deixe tudo isso, vem brincar de amor/ [...]/ Menina pura como a flor/ Sua boneca vai quebrar/ Mas viverá o nosso amor”. 

É proibido fumar”, sucesso de Roberto Carlos de 1964, é outra ode à transgressão que alude metaforicamente ao desejo sexual, representado, dessa vez, pela faísca incandescente que sai de seu beijo e da brasa que não pode ser apagada de jeito nenhum: “Eu pego uma garota e canto uma canção/E nela dou um beijo com empolgação/Do beijo sai faísca e a turma toda grita/ Que o fogo pode pegar!”. 


A transgressão da Jovem Guarda, contudo, era ambígua - esbarrava em certos limites. Havia um pé na ousadia, mas outro na tradição, como sugere Paulo César de Araújo, autor da biografia não autorizada “Roberto Carlos em Detalhes” (Editora Planeta, 2006). No hit Namoradinha de um amigo meu”, por exemplo, Roberto Carlos confessa que está loucamente apaixonado pela namorada de um amigo. Mas o que se insinua como uma apologia ao adultério termina com uma lição de moral que agradaria qualquer cristão: “Eu sei que vou sofrer/ Mas tenho que esquecer/ O que é dos outros não se deve ter”. 

Ou seja, os artistas da Jovem Guarda tinham suas ousadias, estavam dispostos a romper uma série de limites e tabus, mas não constituíam propriamente uma ameaça tão profunda à moral vigente. Eram, por assim dizer, “bons moços rebeldes”. 

Por outro lado, é equivocado enxergar a Jovem Guarda como um movimento inteiramente ingênuo ou “açucarado”, como parece pregar o senso comum. Ainda de acordo com Paulo César de Araújo, um documento do DOPS de 1971 (durante o governo Médici) fazia restrições ao livro didático “Mundo Novo”, pois ele reproduzia a letra da música “É papo firme”, sucesso de Renato Corrêa e Donaldson Gonçalves lançado por Roberto Carlos em 1966, porque ela fazia “apologia da velocidade em detrimento das leis do trânsito, do uso da gíria e do embalo”. 

O que Paulo César conclui no livro é que, aos olhos dos repressores, as músicas da Jovem Guarda não eram tão inocentes assim, e se tivessem sido lançadas após a promulgação do AI-5 (em dezembro de 1968), quando se instaurou a repressão generalizada no país, muito provavelmente teriam sido censuradas. 

As coisas lindas da América… e do Brasil! 

Em termos musicais, um dos maiores méritos da Jovem Guarda foi a construção de uma linguagem pop para a música nacional. A partir da incorporação de elementos do rock britânico e americano, esses jovens artistas criaram uma forma nova, moderna e antenada com as novas tendências globais de falar sobre o cotidiano de grande parte da juventude brasileira daquele tempo: os namoros, as decepções amorosas, as ambições sociais e os embates com angústias da vida adulta. 

Tudo isso potencializado pelo ritmo veloz e os arranjos eletrificados, cheios de solos de guitarra e gritinhos eufóricos. 

Na forma, grande parte das letras da Jovem Guarda se assemelham à estrutura das histórias em quadrinho. Simples e diretas, iniciam geralmente com algum conflito, um clima de tensão, e terminam com alguma sacada, uma chave de ouro, que pode ser uma tirada bem humorada ou uma lição de moral. 

Em “Pega ladrão” (Getúlio Cortes), por exemplo, ficamos sabendo logo nos primeiros versos que um coração foi roubado por um ladrão em plena luz do dia. Ao final da canção, descobrimos que o coração era, na verdade, “uma joia pendurada num cordão”. Já em “O gênio” (também de Getúlio Cortes), outro bom exemplo que segue esse estilo, Roberto Carlos (que lançou a música em 1966) narra seu encontro com um gênio da lâmpada. Sai logo pedindo para conquistar o “broto” e muita grana para “farrear”. Mas o gênio lhe dá uma lição e, ao final, ele conclui, resignado: “Só sei dizer que com ele aprendi/ A não querer tudo fácil demais”. 


Por outro lado, havia também as belas e simples canções de amor. Nelas, os romances juvenis eram traduzidos por baladas que caíam no gosto do público e faziam os jovens suspirar. Alguns artistas, inclusive, se notabilizaram pela veia romântica na Jovem Guarda, como Jerry Adriani (“És meu amor”, “Doce, doce amor”), Martinha (“Eu te amo mesmo assim”, “Eu daria a minha vida”), Wanderley Cardoso (“O bom rapaz”, “Doce de coco”) e a dupla Leno & Lilian (“Devolva-me”, “Eu não sabia que você existia”).

Roberto Carlos, que a partir da década de 1970 se tornaria o grande cantor romântico do Brasil, já experimentava essa faceta na Jovem Guarda, com clássicos como “Por isso corro demais”, “Eu te darei o céu” e “Como é grande o meu amor por você”. 

A dupla Leno & Lilian, que lançou o sucesso “Devolva-me” (Foto: Reprodução) 

E não se engane achando que essas músicas eram totalmente inofensivas e apenas divertiam a audiência do programa. Embora sem essa intenção, a partir de 1966 a Jovem Guarda iniciou um caminho que acabou por revolucionar a música popular brasileira.

Dali pra frente tudo seria diferente. 

Texto por: Tito Guedes 


Este é o segundo de uma série de 3 textos sobre os 55 anos da Jovem Guarda, movimento musical que revolucionou a música brasileira nos anos 1960 e Tema do Mês de agosto no IMMuB . Fique ligado em todos os capítulos dessa história: 

Parte 1 -  A origem a Jovem Guarda 

Parte 2 -  A explosão da Jovem Guarda (lendo agora) 

Parte 3 - O legado da Jovem Guarda 

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