Colunista Convidado

“Quem me viu, quem me vê”, o rock ardoroso de Pélico

segunda, 09 de dezembro de 2019

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Um encontro das dores de cotovelo do gaúcho Lupicínio Rodrigues (1914-1974) e os sambas de cabaré do carioca Nelson Cavaquinho (1911-1986) com as guitarras rascantes do rock atemporal. Eis um bom prelúdio para “Quem me viu, quem me vê” (Independente), do cantautor paulistano Robson Pélico. O título ainda evoca, de passagem, outro ás dos dissídios amorosos, o Chico Buarque do início da carreira, de “Quem te viu, quem te vê” (“quem não a conhece não pode mais ver pra crer/ quem jamais esquece não pode reconhecer”), de 1967. Mas, mesmo trafegando nas bordas da poética substantiva da MPB, Pélico tem caligrafia pessoal e uma inquietação de iniciante, embora já tenha um bom lastro de obras registradas.

Debutou em “Melodrama” (2003), que acabou à margem de sua discografia, seguiu por “O último dia de um homem sem juízo” (2008), mais dois títulos produzidos por Jesus Sanchez, baixista do trio paulistano Los Pirata, “Que isso fique entre nós” (2011) e “Euforia” (2015), este com participações da cantora Carú Ricardo e da atriz Letícia Spiller e projeto gráfico do cantor gaúcho, Filipe Catto. No ano seguinte, Pélico teve sua gravação de “Não há cabeça” ( Angela Ro Ro) incluída na novela da TV Globo, “Velho Chico”.

O novo álbum, produção de Dudinha (baixo, vocais, percussão, coral sitar) e Regis Damasceno (guitarras, baixo, sintetizador, piano elétrico), abre alas num rock andante de batida enérgica, título determinado (“Acerto de contas”) e letra em riste: “Sem a menor esperança/ do tempo curar a doce ilusão/ das coisas que vão se resolver”. Entre eventuais falsetes, calço de palmas e um vocal incisivo, um disparo fatal: “porque sei que você se bronzeia com a luz alheia (...) e cê não vai mais / se esconder em mim”. Na seqüência, a faixa título ralenta numa balada tecladista, com vocais de Teago Oliveira (que reaparece na cariciosa “Pra te dizer”) e certa resignação: “quem me viu passar não sabe o que eu passei/ pra seguir, suportei tanta fita errada que eu nem te contei”. Outro convidado vocal é Negro Leo, na dúbia “Descaradamente”, diatribe amorosa num pique de rock raulseixista, que quase pode ser lida como a anfíbia “Apesar de você” (outra de Chico Buarque). “Me cansei de você / e dessa gente que mente descaradamente/ e dessa gente que mente espatifadamente/ vejo no horizonte um desejo ardente/ de mudar a história, nem que seja no grito”.

Autor de todas as dez faixas (só “Louco por você”, título homônimo do primeiro disco de Roberto Carlos, tem parceria de Carvalho), Pélico viaja com alta intensidade entre rocks, baladas e canções. Da gingada “Não procurava ninguém” (“perdida e decidida a bagunçar minha vida e arrumar uma saída/ pra minha causa perdida de gostar de alguém”) à compassada e sofrida “Nunca mais” (título de um clássico do samba canção, de Dorival Caymmi): “pouco a pouco a gente se perdeu/ entregamos o futuro a Deus”. No ápice das dores de amores, a densa “Machucado” (“de tanto não/ a gente vai perdendo o medo de morrer em vão”) é descalibrada por uma espiral ruidosa. Mas Pélico fecha o périplo num raio de esperança, na cadenciada “Amanheci”: “Em seus braços sonhei que o novo virá/ e quando dei por mim/ amanheci”.


Tárik de Souza

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