Na Ponta do Disco

“RACIONAIS MC’S: ENTRE O GATILHO E A TEMPESTADE”: Resenha do livro (Perspectiva: 2023)

segunda, 21 de agosto de 2023

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Hoje, o Hip-Hop está em Harvard com o arquivo Hiphop Archive & Research Institute, o Hip-Hop está na Unicamp com a obrigatoriedade de “Sobrevivendo no Inferno” para o seu vestibular, O Hip-Hop está na Netflix com diversos documentários –  inclusive no excelente Racionais das Ruas para o Mundo de Juliana Vicente –, o Hip-Hop está nas Olimpíadas com a modalidade do breaking. E os Racionais estão representados por Mano Brown também como um “projeto de visão de sociedade” no podcast “Mano a Mano”. Mas o Hip-Hop nunca deixou de ser uma força contestadora e transgressora – em diversos níveis – e nunca deixou de ser uma das expressões mais contundentes do “sujeito periférico”, como bem define o pesquisador Tiaraju Pablo, que assina o penúltimo capítulo do livro. Talvez essa seja a marca mais forte que perpassa o livro “Racionais MC’s: Entre o Gatilho e a Tempestade” (Perspectiva: 2023) lançado esse ano e organizado por Daniela Vieira e Jaqueline Lima Santos. E o Hip-Hop celebrou esse mês seus 50 anos de surgimento nos EUA e 40 no Brasil. 


O livro em questão faz parte da coleção “Hip-Hop em perspectiva” integrado também pela tradução da publicação “Barulho de Preto: Rap e Cultura Negra nos Estados Unidos Contemporâneos” de Tricia Rose (Perspectiva, 2022).

A apresentação de Deivison Faustino (Deivison Nkosi) já é um soco no estômago para quem ainda insiste no absurdo de dizer que “não existe racismo no Brasil”. Em seu texto, Deivison lamenta, a princípio, ter que trazer para a experiência do pessoal algo tão coletivo como foi e é o Hip-Hop, mas denota em sua vivência o amargo sentimento do jovem negro periférico brasileiro ao sofrer um enquadro no qual apenas os negros foram abordados e humilhados, ao mesmo tempo em que mostra como, depois, foi arrebatado pela força catártica de um show dos Racionais em que Mano Brown parecia cantar justamente as dores de cada um presente no público: “Aê mano, o sistema te trata como lixo. Te humilha! Te pisa e dá as costas... mas hoje é o dia de provar que você é mais.”


Na Parte 1, “História e Historiografia do Grupo”, o primeiro texto é “Efeito Colateral do Sistema”, assinado pelas organizadoras do livro. Ali se apresenta uma visão sintética, mas muito rica, sobre a trajetória do “grupo musical mais perigoso do Brasil”, trazendo o fio narrativo que remonta desde o Bailes Blacks do fim da década de 1960 até o início da década de 1970.

O livro segue como um verdadeiro catálogo informativo sobre os Racionais. Mais do que um catálogo é um prisma que mostra muitas facetas espelhadas da obra, da recepção e da crítica sobre o grupo de Rap mais importante do país.

Nesse sentido, apesar do livro estar dividido em subtemas que abordam questões que vão desde raça e masculinidade até política e estética, assim como a questão da “produção de desigualdades”, existe um sentido mais amplo que abrange a possibilidade extremamente rica e múltipla de se interpretar por vários olhares a obra de KL Jay, Mano Brown, Ice Blue e Edi Rock. O livro nesse sentido é um compilado – um amalgama das várias interpretações historiográficas e subjetivas daquilo que é mais potente dentro do projeto emancipador do Hip-Hop. 

Como aponta Silvana Carvalho da Fonseca em seu excelente artigo, “o movimento Hip-Hop constitui-se como forma de ser da cultura negra transnacional e expressa diversas maneiras de existir das comunidades negras da África e da diáspora negra”. Não à toa para falar dessas múltiplas experiencias que surgem do “Atlântico Negro” (no termo canônico de Paul Gilroy) é necessário se expor e incorporar a densidade histórica e as múltiplas camadas que constituem o movimento Hip-Hop. 

Hip-Hop e a obra dos Racionais no Brasil é coisa muita séria para a música brasileira e para nossa formação identitária de forma que qualquer narrativa que focasse apenas nos eventos causais da trajetória dos Racionais tenderia a ser leviana e rasa.

Nesse sentido, destacamos artigos como o de Paula Nunes de Carvalho sobre os Racionais e a imprensa, assim como “Rimo, Logo Penso”, de Janaina Machado – um verdadeiro tratado filosófico sobre o corpo negro em rima e movimento em um mundo subalternizante – o texto de Bruno de Carvalho Rocha sobre o imaginário religioso e mitificante dentro da estética do Rap e, por fim, o artigo de Tiaraju Pablo sobre o trabalhador negro periférico dentro uma perspectiva de reificação do sujeito na sociedade capitalista. Todos esses, a título de exemplo, assim como todos os artigos do livro, trazem essa visão prismática do que foi até agora a experiência do grupo dos “quatro negro mais perigosos do Brasil”.

O Hip-Hop é um movimento sociocultural afirmativo e emancipatório do sujeito “afro-diaspórico no Brasil”. Existem muitas formas de falar sobre essa experiência, seja pela análise das músicas e letras, seja pela compreensão dos fluxos de um Atlântico negro, seja pela compreensão das trajetórias das “sujeitas e sujeitos periféricos”, seja pela análise da iconografia e do imaginário estabelecido pelo grupo. O livro abarca tudo isso. 

Além dos DJ’s e MC’s, do Rap, do Graffiti e o do Breaking o Hip-Hop tem em seu quinto pilar o conhecimento. Este nunca é uma forma simples de entender a realidade: ora prismático, ora cheio de camadas, o conhecimento se apresenta como uma forma de compreender a realidade concreta em sua totalidade. E se o Brasil é uma das maiores usinas sonoras do mundo (e em minha perspectiva, a maior), aqui pudemos ter uma experiencia do Hip-Hop e Rap completamente única e extremamente potente. 

Se a canção em nosso país é uma forma real de interpretar uma nação tão complexa e a obra dos Racionais definitivamente é uma das obras mais importantes para pensarmos o Brasil, então um livro como “Entre o Gatilho e a Tempestade” é essencial em um momento de verdadeira canonização do Hip-Hop. 

A cultura afro-diaspórica no Brasil e nas Américas é uma fórmula alquimista de transformar o carvão da dor e sofrimento do holocausto negro brasileiro em um diamante emancipatório e revolucionário. Como define o grande romancista nigeriano Chinua Achebe em sua célebre frase, deveríamos transformar a dor e o sofrimento “dos desertos da vida” em algo belo e adorável. Esse é o único hermetismo presente no livro em questão – o hermetismo também trazido por Jorge Bem Jor, de uma alquimia transformadora. E para realizar essa alquimia fantástica precisamos do conhecimento em sua natureza prismática, diversa, concreta e complexa para acharmos finalmente uma “fórmula mágica da paz”. 

Em tempo, nos 50 anos do Hip-Hop outra narrativa surge para celebrar um dos maiores movimentos de emancipação da juventude negra brasileira: no Anhembi  em 2024 o Vai-Vai vem com o enredo “Capítulo 4: Versículo 3 – Da Rua e do Povo/ O Hip-Hop: Um Manifesto Paulistano” assinado por Sidnei França. Do povo para o povo, a obra dos Raciocinais transcendeu barreiras: entre o holocausto e a necropolítica mudou a trajetória de vida de centenas de milhares de jovens negros periféricos em todo o Brasil. Esse é talvez um dos focos também do excelente capitulo de Rachel Sciré cujo trabalho justamente reflete sobre as aproximações das figuras do malandro com os projetos civilizatórios do samba e do rap por meio daquilo que podemos entender como “pelintrismos” e no limite para pensarmos até em um “banditismo social”. 

“Entre o Gatilho e a Tempestade” é uma das melhores e mais completas amostras de toda essa aventura civilizatória e emancipatória do Hip-Hop em nosso país e é leitura obrigatória para entender a força e a densidade da obra dos “quatro pretos mais perigosos do Brasil”. 

 


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