A Palo Seco

Redescobrindo Belchior

segunda, 05 de abril de 2021

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De anos em anos, algum artista já renomado ganha uma visibilidade instantânea, que faz com que ele retome o seu lugar de destaque e sua obra, menos acessada durante certo período, volte a ser alvo de um novo interesse. De repente, pelos motivos mais curiosos, ela recobra a força que estava oculta e o artista passa a reaparecer em todos os cantos. Esse processo parece estar acontecendo, há alguns anos, com o cantor e compositor Belchior.

Não é a primeira nem a última vez que o processo acontece. Tom Zé, por exemplo, após integrar a onda tropicalista, na passagem da década 1960 para a de 1970, seguiu constante com seu trabalho experimental até ser redescoberto pelo prestigiado músico escocês David Byrne, no fim da década de 1980. Também Luiz Gonzaga, sucesso absoluto entre a década de 1940 e 1950, passou, com a bossa nova, por uma década cantando pelo interior do país, até ser redescoberto pela juventude dos festivais de MPB no fim da década de 1960, tendo como fato impulsionador o boato de Carlos Imperial, que divulgava que os Beatles gravariam "Asa Branca".

Foto: Reprodução 

Com Belchior, foi a inexplicável matéria investigativa do Fantástico de 2009, que levou o compositor de volta à boca de seus fãs. O fato de o cantor estar propositalmente longe da mídia, recluso, vivendo de forma simples, levou o programa televisivo a criar uma atmosfera policial de caça ao artista.

Mas, se foi este acontecimento o desencadeador de seu retorno aos meios de comunicação em massa, este fato é muito pequeno para justificar a sua permanência. Assim como Tom Zé e Luiz Gonzaga, o motivo da força de seu reaparecimento se deve menos a esse fato do que ao seu trabalho e ao momento em que o fato ocorreu. Se não fosse assim, o fato seria lembrado menos como uma redescoberta do que um acontecimento isolado entre outros modismos da grande mídia.

Certamente, a questão é muito mais ampla e foi acelerada, sem dúvida, pela reportagem e pelo posterior falecimento de Belchior. Nos últimos anos, seu trabalho passou a ser objeto, de forma definitiva, da investigação de filmes, séries, peças de teatro, livros e até blocos de carnaval. Passou mesmo a alcançar um imenso público, completamente novo para a sua obra, quando Emicida, Pabllo Vittar e Majur dedicaram um clipe a uma releitura de sua canção "Sujeito de Sorte", reinterpretando-a com um sentido absolutamente novo.

Bloco "Volta Belchor" (Foto: Reprodução) 

É possível pensar, então, que, mais que contingências como a reportagem policialesca, sua opção por uma vida discreta ou o fato trágico de sua morte, a obra de Belchior retomou definitivamente o seu lugar merecido devido a questões mais profundas. No meu ponto de vista, especialmente à proximidade da fase histórica que vivenciamos com o momento em que Belchior lançou suas primeiras canções.

Foi no início da década de 70 que Belchior trabalhou extensamente as canções de seu primeiro disco, que também é seu álbum de maior impacto, "Alucinação", de 1976. O clima geral era de desesperança: o agravamento do terrorismo de Estado devido ao AI-5 provocava um momento noturno, uma mudança de paradigma. Mundialmente, o fim do sonho hippie, decretado por John Lennon, e, especificamente, no momento de arrefecimento ditatorial do Brasil, a ida dos irreverentes tropicalistas Gil e Caetano para o exílio significou um vácuo estético, após o choque que o tropicalismo causou na música popular brasileira.

Em momentos como esse, aparecem as mais diversas igrejas em busca de conversão. Novos movimentos, sonhos individualistas, misticismos de todos os tipos, cria-se, enfim, um verdadeiro mercado, para todos os gostos.

Belchior é um raro personagem que, mais que propor um novo movimento a se colocar como um novo passo na “linha evolutiva da música popular brasileira”, nas palavras de Caetano Veloso, habita este momento de desilusão. O álbum "Alucinação" é um retrato desse vácuo de perspectivas, em que os grandes movimentos coletivos passam a gozar, ao mesmo tempo, de grande interesse mercadológico das gravadoras e de profunda artificialidade. Belchior é o cantor que deu forma à tragédia que seguiu o fim do sonho da contracultura no Brasil.

Pabllo Vittar, Majur e Emicida no clipe "Amarelo", que usa sample de "Sujeito de Sorte". (Foto: Fernando Schlaepfer) 

Há uma clara analogia, é certo, com os dias de hoje. Se a primeira metade da década de 70 foi órfã do sonho de 1968, o momento atual é órfão dos sonhos de Junho de 2013, em que, por alguns momentos, pareciam possíveis mobilizações políticas e estéticas autônomas, ou qualquer tipo de sentimento coletivo que não o pânico.

Surgem hoje, também, muitos tentando surfar a onda deste vácuo, de coaches aos adeptos dos misticismos mais diversos, sendo o maior desses oportunistas aquele que governa o país, em uma crise política e estética sem precedentes. Talvez esse sentimento profundo de desilusão e superficialidade das soluções coletivas apresentadas hoje seja o principal motivo pelo qual Belchior volta a ser tão presente: ele é, talvez, o grande compositor da desesperança em nossa música popular brasileira.

Em momentos assim, nosso cancioneiro e nossa literatura nos fornecem um grande acervo, pronto para ser atualizado ao gosto de um novo momento histórico, de uma nova sensibilidade. Talvez seja justamente porque, hoje, o buraco em que nos metemos parece não ter fim, é que se olha para as canções de Belchior, mais do que nunca — porque há alguma rara lucidez em suas ideias.

Heitor Zaghetto 

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