A música de

'Samba é todo meu ideal': uma trajetória de Synval Silva

por Carlos Eduardo Pereira de Oliveira

terça, 16 de março de 2021

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Adeus Batucada” é uma das gravações consagradas na grande lista de músicas de Carmen Miranda. Gravada em 1935, é uma das canções que não estaciona no tempo, com intérpretes em diferentes épocas da música brasileira, transitando por gêneros musicais difusos. Nas vozes de Alaíde Costa, Célia, Eduardo Dusek e Ademilde Fonseca, “Adeus Batucada” ganhou novas roupagens, sem perder a força de um samba que se despede do “meu pandeiro de samba / tamborim de bamba” no alto da madrugada. Carmen Miranda, e outros tantos artistas da música brasileira, cantam o choro pelo fim da batucada, que vinha do coração e da composição de Synval Silva

A própria “Adeus Batucada” encontra a voz de Synval Silva somente em seu LP homônimo, gravado em 1973 pela RCA Victor, já no alto de seus sessenta anos. Seu único álbum gravado encanta com grandes composições de sua extensa carreira como compositor, como “Coração”, que também foi sucesso na voz de Carmen Miranda. Aliás, foi na parceria com Carmen que Synval alcançou as primeiras chances no mundo musical. Ruy Castro destaca uma passagem sobre o início da relação, apresentados por Assis Valente – outro grande parceiro. Castro destaca que a cantora se surpreendeu ao ouvir “Alvorada” na voz “do tímido Synval”, que falava sobre “morro, cuíca e batucada” (CASTRO, 2005, p.100), mas que o próprio Synval pouco conhecia naquele momento. 

Nascido em Juiz de Fora, interior de Minas Gerais, em 1911, a música fazia parte de sua vida desde cedo. Filho de músico, acompanhava o pai nas apresentações da Banda Eutrepe Mineira, na qual era clarinetista. Aprendeu violão a partir das aulas que seu irmão tomava, tornando exímio violinista nos anos que se passaram, mas trabalhava como mecânico de carros. Em 1931, é levado ao Rio de Janeiro por intermédio de Norival Pandeiro, que consegue uma colocação para o jovem Synval na Rádio Mayrink Veiga, no programa regional “Good-Bye”. Nesse mesmo período, conhece Assis Valente pelos corredores da rádio, que gosta do jovem de 22 anos e o leva para uma reunião com Carmen Miranda, encontro que Ruy Castro conta na biografia da cantora. Castro afirma que Carmen pedira à Synval subir o morro e se aproximar de grandes nomes do samba e de seu universo musical. O sambista aceitou, e o resultado foi a composição de “Ao Voltar ao Samba”, feita sob medida para Carmen.


A relação com Carmen Miranda assentou suas primeiras composições gravadas, ao mesmo tempo que era seu motorista particular. Um perfil da artista, feito pela revista carioca Cruzeiro, em 1937, destaca a posição ocupada por Synval. “Carmem Miranda popular e simples me apresentou o seu “chauffeur”. Fiquei então sabendo que (...) Synval Silva era o mesmo autor de tantos sambas lançados pela estrella. Aquelle é o que era o autor de ‘Adeus Batucada’ e ‘Coração, governador da embarcação do amor’. Nunca que eu desconfiasse. O Synval é um bamba, não resta dúvida” (O CRUZEIRO, 1937, p.9). A perplexidade do texto era pelo nítido contraste entre a posição ocupada por Synval e os grandes sucessos que compôs. Na ótica colocada, esses dois mundos não encontravam simetria. Eram completamente díspares, e por isso a surpresa. Ruy Castro destaca que Synval não parou de trabalhar como mecânico de carros, mesmo após seus primeiros trabalhos musicais. Foi ele que auxiliou Carmen na compra de um carro, e teria, inclusive, ensinado a estrela a dirigir. Castro aponta que “Carmen tornou-se efetivamente motorista, mas, em todas as ocasiões em que não ficava bem para a estrela chegar ao volante de um automóvel, Synval continuou a ser o seu chofer” (CASTRO, 2005, p.107).

Essa relação causa estranheza aos olhares do presente, ainda mais quando pesquisamos em jornais de época. Em 1935, mesmo ano de “Adeus Batucada”, foi convidado a compor dois sambas para “Bonequinha de Seda”, filme de Oduvaldo Vianna, protagonizado por Gilda de Abreu e lançado no ano posterior. Na matéria do jornal “A Noite”, de maio de 1935, o cantor é apresentado como “o ás do samba”, ou o “popularíssimo” (A NOITE, 1935, p.6). O jornal Gazeta de Notícias, ao noticiar a participação do sambista, destacou que o “az do samba” foi chamado para “escrever o samba que o caracter bem brasileiro do film carecia” (GAZETA DE NOTÍCIAS, p.7, 1935). Arlette da Rocha Vianna, em entrevista para a Gazeta de Notícia, em abril de 1935, apontava Synval como um de seus compositores preferidos (GAZETA DE NOTÍCIAS, p.13, 1935). 

Portanto, Synval era retratado como um dos grandes nomes do samba na rádio, além de diversos trabalhos serem publicizados. Aquela estranheza retratada na revista Cruzeiro era fruto dessa tensão, entre um trabalho braçal como motorista que não condizia com o sucesso artístico, na visão da revista. Por hora, é importante compreender essa relação como fruto de seu tempo, principalmente construto de uma realidade sobre a música brasileira naquele tempo. Destaco que a carreira de Synval dava seus primeiros passos na década de 1930, em uma realidade difusa na qual conhecemos hoje. Um compositor de sucesso naquele período não representa a mesma estabilidade financeira do presente. Diversos artistas sofreram com a falta de pagamentos ou trabalhos para sobreviverem, e conviviam de perto com altas dívidas. 

Essa questão pode ser entendida em conjunto com a análise sobre o mercado cultural brasileiro do período. Ao analisar a indústria cultural do país, Renato Ortiz (1994) aponta para um descompasso entre o discurso moderno e a realidade técnica disponível no período, em uma inadequação de conceitos com os tempos. Com uma “vontade que se antecipa”, o discurso moderno encontrava suas doses de realidade ao deparar-se, por exemplo, com Synval Silva como motorista de Carmen Miranda. Na interpretação de Ortiz, a indústria cultural nesse período era incipiente, e esbarrava nas impossibilidades materiais disponíveis para sua difusão, e isso refletia na situação dos artistas do período. Assim, o autor destaca a diferença entre o “existir” e o se “realizar”, que se aproxima do espanto da revista Cruzeiro com Synval

Foto: Reprodução/IMMuB

Por conta dessas condições, o trabalho artístico de Synval Silva se diversificou. Talvez, seguindo o conselho de Carmen Miranda, tal qual Ruy Castro apontou em sua biografia, ou pelo contexto enfrentado, Synval se estabelece no Morro da Formiga, região da Tijuca e zona norte da cidade. O sambista cantava sua realidade em suas obras, sempre articulando seu local com o samba. Em “Fonte de amor”, interpretada por Cyro Monteiro, Synval destaca essa relação ao escrever que “na favela também é / onde o samba tem muita harmonia / tem como base boa bateria / porque no samba sempre foi o meu prazer / eu tenho muita coisa boa / e posso oferecer” (SILVA, 1942). Tanto pode oferecer que auxiliou na fundação da Escola de Samba Império da Tijuca, em 1940, com composições de samba-enredo e levando o nome da agremiação por onde passava. 

Em matéria para o jornal A Manhã, de novembro de 1947, Synval foi entrevistado junto com o então presidente da Império da Tijuca, Fernando de Matos. Essa entrevista é emblemática, por fundir os dois mundos do artista, e apresentar ao público uma camada importante de sua vida. Ao ser perguntado do “‘porquê’ de sua preferência pelo pessoal simples do morro, quando podia fazer fortunas com suas composições”, “o famoso compositor da Escola” responde que “o povo dos morros também merece à minha consideração”. A matéria se encerra com um breve perfil: “Synval é assim mesmo, franco e sincero e nas suas melodias revela a todos os seus queixumes, suas ideias e seus amores. Synval é o verdadeiro sambista”. (A MANHÃ, p.10, 1947). 

Ainda na entrevista, Synval canta uma música de sua autoria sobre a relação com o samba: “Impera em nossos corações um grande amor / que era antigamente habitado pela dor / Samba é todo meu ideal / Cada samba é uma lição de amor fraternal”. A relação que estabelece com o gênero musical e seu papel frente a sociedade, foi debatido por ele em outro momento, afastado temporalmente. No programa “Água Viva”, da extinta TVE Rio, em 1976, Synval destaca: “as músicas e letras que não tem um sentido educacional não me agradam – desculpe meus colegas – de vez que tem que ter no samba tudo” (SILVA, 1976). Entre as duas falas do sambista, existe a diferença de quase 30 anos. Na trajetória da indústria cultural brasileira, esse salto temporal representou seu fortalecimento. A indústria do entretenimento consolidou-se nas décadas de 1960 e 1970, com a particularidade de ser promovido pelo regime militar. Renato Ortiz aponta que essa emergência reorganiza o quadro cultural brasileiro, e abrange a questão por outras noções, como a cultura de consumo e a facilidade de produção no país.

As falas de Synval Silva se articulam a um ideal nacional-popular, que tinham o papel de “facilitar a comunicação com as massas”, como destaca Marcos Napolitano (2008). Mesmo com sua derrota, em virtude do golpe civil-militar de 1964, foi utilizado como referencial para as construções culturais nos anos posteriores, baseados na luta pela identidade brasileira e pela democracia. Assim, seus referenciais ideológicos se modificam a partir dos anos 1970, e dialoga com a lógica comercial hegemônica no campo da cultura, que adensa com a consolidação da indústria cultural. Portanto, o “sentido educacional” que Synval evoca na sua fala, em 1976, está próximo dessas construções na esfera cultural. Além disso, dialoga profundamente com a trajetória de lutas que Synval se envolveu durante sua carreira.

O jornal “A Manhã”, de novembro de 1945, noticiou a realização da 1ª Convenção Nacional do Negro Brasileiro em São Paulo, por intermédio do Teatro Experimental do Negro (TEN). Kabengele Munanga (2016, p.117) destaca que o TEN nasceu na contestação da discriminação racial, e no diálogo com a africanidade brasileira, uma “tradição cultural cujo valor foi sempre negado ou relegado”, e “reivindicava o reconhecimento do valor civilizatório da herança africana e da personalidade afro-brasileira”. Assim, a 1ª Convenção articulou-se a essa dimensão do TEN, e que teve como produto o “Manifesto da convenção nacional do negro à nação brasileira”, que reivindicava, fundamentalmente, que a nova Constituição abarcasse a “origem étnica do povo brasileiro”, e que “se torne matéria de lei, na forma de crime de lesa-pátria, o preconceito de cor e de raça” (A MANHÃ, 1945, p.5). Na convenção, Synval Silva representou Minas Gerais, e foi eleito como 2º secretário do Diretório Nacional da Convenção. 

Com isso, a trajetória de Synval Silva é permeada de lutas, em que as esferas musical, social e político não se desconectam. O compositor de “Adeus Batucada” atuou de forma diversificada nessas áreas, e talhou seu espaço na luta por políticas públicas na promoção de igualdade racial, e do papel do samba e do carnaval nesse processo. Synval merece pesquisas que aprofundem essas costuras, e analisem sua figura multifacetada sob diferentes perspectivas científicas. Isso tudo, lembrando do “Coração / meu companheiro na alegria e na dor”, e sem esquecer que “a esperança é sempre a última que morre” (SILVA, 1935).



Carlos Eduardo Pereira de Oliveira é doutorando em História do Tempo Presente pela Universidade do Estado de Santa Catarina. Pesquisador de história e música; trabalhou com a cena rock dos anos de 1980 em Florianópolis durante seu mestrado. Atualmente pesquisa a história da MTV Brasil.

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