Sambajazz, bossa nova e as Coisas (1965), de Moacir Santos
A reinvenção radical do samba moderno que deixou estupefato um estudante de composição musical no Rio de Janeiro dos anos 2000.
1.
A primeira vez que ouvi as Coisas afro-brasileiras, de Moacir Santos, foi por ocasião das excelentes regravações da obra do maestro pernambucano lançadas em CD duplo (MP,B),
em 2001, por Adnet e Nogueira. Estávamos na aurora do milênio, vivendo o
surgimento das plataformas digitais e a remasterização de LPs clássicos
se tornou mais um lucrativo filão da indústria fonográfica. Nesta leva
de álbuns relançados para a venda em CDs, inclusive para quem já os
havia adquirido em vinil décadas atrás, havia aqueles rotulados como sambajazz.
A
era de relançamentos digitais veio a coroar um certo entendimento sobre
o gênero sambajazz que vinha sendo construído desde os anos 1960 de
forma independente da bossa nova, com a qual se confunde. E foi neste
momento que o álbum original "Coisas" (Forma,1965), de Moacir Santos,
surgiu em CD. Para termos apenas um dentre muitos exemplos da recepção
da crítica a este relançamento, Ruy Castro escreveu em 2004 que o "Coisas" “Foi
o último e o melhor disco de ‘samba-jazz’ feito no Brasil daquela
época: uma obra-prima de música instrumental, com raízes ardentemente
brasileiras e uma certa tintura jungle, ellingtoniana (...)”.
O
sambajazz se tornou então uma espécie de “lado B” da bossa nova, em uma
analogia com “o outro lado” do vinil: aquele que não traz os sucessos
de rádio, mas aquelas músicas menos escutadas que são valorizadas pelos
especialistas no gênero e aficionados.
Para mim, assim como para
muitos músicos da minha geração, que nem sempre tinha acesso aos LPs
originais, aqueles relançamentos apresentados como sambajazz foram uma
descoberta excitante e inspiradora. Afinal, estávamos ávidos por aquelas
“novidades”. E nem tudo podia ser encontrado com vendedores de LPs
usados, pois muitos álbuns eram raros e haviam se tornado itens de
colecionador. Isso sem falar na multiplicação de matérias de jornais,
sites e publicações sobre esta que foi fase mais moderna da música
brasileira, a despeito ter acontecido décadas atrás, digamos, entre 1956
e 1965.
Não era apenas a indústria fonográfica que estava se
adaptando aos novos tempos. Também a configuração da cidade do Rio de
Janeiro estava em transformação na virada do milênio. Se nos anos 1950 a
música noturna havia migrado do bairro da Lapa (RJ) para a cena noturna
de Copacabana, a exemplo do Beco das Garrafas onde floresceu o samba
moderno, agora havia um renascimento da boemia na Lapa e os jovens se
voltavam para as músicas populares de décadas passadas. O antigo se
fazia novo para as novas gerações. Muitos músicos formavam bandas de
gêneros como forró, samba ou choro, atingindo um público numeroso e
ávido por estes eventos noturnos de tom informal em um degradado Centro
do Rio de Janeiro, mas que trazia a ambiência de uma era de ouro da
música popular. Tocávamos em antigos restaurantes e antiquários, entre
poeira e móveis antigos e uma audiência animada e dançante.
Nessa
época eu cursava Bacharelado em Composição Musical na UNIRIO (RJ) e me
juntei a outros colegas para reinventar a modernidade retrô das bandas
de gafieira, que misturavam o que havia de melhor na música da indústria
cultural de décadas passadas, de samba e choro a sambajazz, sempre com o
nobre objetivo de fazer balançar os esqueletos. E, de quebra, ainda
praticávamos improvisação e arranjo, escrevendo para os naipes de
sopros, além de pesquisar em um vasto repertório por novas músicas
(inclusive na internet discada, baixando lentamente gravações em
mp3...). O grupo se chamava Garrafieira
e chegou a gravar um premiado CD (Biscoito Fino, 2004) e a contar com
dez músicos no palco. Depois, quando fiz um doutorado sobre o movimento
do sambajazz, em Ciências Sociais pela PUC-RIO, em 2015, vim a saber que
quase todos estes instrumentistas que eu pesquisava haviam tocado
regularmente em bailes de gafieiras meio século antes, muitas vezes no
Centro da cidade do Rio de Janeiro, como nós o fazíamos então.
Pouco tempo antes eu havia descoberto os dois álbuns geniais de João Donato e seu Trio (Polydor,1963) através de gravações em fita K-7. Conheci também o excelente LP "The Maestro" (Blue Note) que Moacir Santos lançara em 1972 e que fora indicado ao Grammy Awards norte-americano. E pude então ouvir, além do "Coisas", os LPs fundadores do samba moderno "É Samba Novo" (Columbia, 1963), de Edison Machado, com arranjos de Moacir Santos, entre outros e "Você ainda não ouviu nada!" (Philips, 1964), de Sérgio Mendes e Bossa Rio, com arranjos de Santos e de Tom Jobim. Ambos tinham uma formação instrumental reduzida e voltada para região grave, com dois trombones e um ou dois saxofones.
Essa sonoridade noire, de tons graves, é uma marca da música de Moacir Santos
e também está presente no Coisas, cuja instrumentação e orquestração
traz as ondas sonoras para as suas bases acústicas. Assim como também
eram graves a voz de Santos e os instrumentos de sopro que ele tocava,
como o sax tenor, o barítono e o clarone. E como também estão muitas
vezes na região grave do espectro sonoro os instrumentos da seção
rítmica, os baixos e os tambores solistas na percussão afro brasileira,
no maracatu e na música dos atabaques do candomblé.
A forte ligação de Moacir Santos
e do sambajazz com as percussões afro-brasileiras e com a elaboração de
levadas os aproxima da música de dança das gafieiras. Não foi à toa
que, em 1964, o crítico Robert Celerier escreveu no O Corrreio da Manhã
que o primeiro álbum de sambajazz foi o "Turma da gafieira" (Musidisc 1956), dirigido por Altamiro Carrilho, com Édison Machado, Raul de Souza e Sivuca, entre outros músicos notáveis.
2.
Moacir Santos
teve uma trajetória radicalmente ascendente, a contar de sua infância
humilde no interior de Pernambuco, onde nasceu em 1926. Muito cedo se
tonou órfão, foi adotado e logo começou a tocar instrumentos de sopro na
banda de Flores (PE). Ainda adolescente empreendeu uma viagem por
diversas cidades do Nordeste, sempre trabalhando como músico. No Rio de
Janeiro, a partir de 1948, se tornou arranjador da Rádio Nacional, a
emissora mais importante do país à época, trabalhando ao lado de músicos
prestigiados. Na capital, aprofundou os seus estudos em musicologia com
mestres destacados como o compositor H. J. Koellreuter. E também se
tornou professor de muitos músicos conhecidos da geração da bossa nova,
entre eles Baden Powell, que declarou em entrevista ao O Globo, em 2000, ter composto os famosos Afro-sambas em parceria com Vinícius de Moraes, a partir de estudos com Santos.
Mudou-se definitivamente para os EUA em 1967 onde colaborou em trilhas
de cinema com músicos como Henry Mancini e Lalo Schiffrin, e onde veio a
falecer em 2006.
A música mais conhecida de Moacir Santos é "Nanã", ou "Coisa nº5".
Apesar de ter sido gravada pelo compositor em formato instrumental e em
compasso seis por oito no seu primeiro álbum, ela se tornou célebre
também como música vocal e em compassos dois por quatro ou quatro por
quatro, através de diversas gravações no Brasil e no exterior. Como a de
Wilson Simonal, no álbum "A nova dimensão do samba" (Odeon,1964), ou a de Gil Evans, em "Where Flamingos Fly" (Capitol, 1971). O próprio compositor a regravou em estilo black music no seu primeiro álbum norte-americano, "The Maestro" (1972), cantando e em compasso quatro por quatro. Essa flexibilidade rítmica de "Nanã", gravada em diversos compassos e levadas, deriva das avançadas experimentações rítmicas de Santos,
que permeiam toda a sua obra e são a sua marca principal, para além das
harmonias sofisticadas do sambajazz. Ao fazer tamanho investimento na
elaboração rítmica, inclusive munido de ferramentas musicológicas das
quais se valia com maestria, o compositor negro inverte a lógica
tradicional que concentra na harmonia e nas alturas melódicas o
desenvolvimento intelectual da música, relegando a rítmica à padrões
coletivos de gêneros musicais, entendidos como corporais e instintivos,
principalmente.
A melodia da "Coisa nº5" ocorreu ao autor
durante uma caminhada no Parque Guinle, no Rio de Janeiro, onde vivia
Vinícius de Moraes e onde há um pequeno lago. Ele a teria concebido como
uma homenagem a Nanã, divindade afro-brasileira ligada às águas. Ainda
segundo o relato de Moacir Santos, a concepção de "Nanã" partiu de uma visão: “Eu vi uma procissão de negros”, ele declarou. A criação desta música a partir de uma “visão” revela a vivência mística de Moacir Santos, um traço biográfico constante, que o acompanhou por toda a vida.
A ideia de visão traz ainda a ligação de Santos com o cinema. Isto porque "Nanã" foi gravada no longa-metragem "Ganga Zumba" (1964), de Cacá Diegues, antes de ser registrada por Santos
em seu primeiro álbum. O compositor costumava tocar esta música com Tom
Jobim e Baden Powell em reuniões informais. Em uma destas reuniões na
casa de Nara Leão,
Cacá Diegues ouviu a canção, ainda sem letra, e se decidiu por
utilizá-la como tema principal de seu primeiro longa-metragem. No filme,
de temática afro-brasileira, a música aparece em versão instrumental,
mas também cantada por Nara Leão sem a letra. No mesmo ano, em 1964, "Nanã" foi regravada por Nara em seu primeiro álbum, também sem a letra e reforçada na região grave por um clarone.
3.
Mas, afinal de contas, o LP "Coisas" (1965), de Moacir Santos,
deve ser entendido como um álbum de bossa nova dada a intensa
colaboração do compositor na primeira metade dos anos 1960 com Vinícius
de Moraes, Nara Leão e Tom Jobim, três ícones do movimento? Ou deveria
antes ser classificado como um registro de sambajazz, conforme o faz boa
parte da crítica atual pelo seu tom afro-brasileiro e, ao mesmo tempo,
jazzístico e instrumental?
Se quisermos traçar uma linha
divisória entre o sambajazz e a bossa nova – algo sempre polêmico quando
se trata de gêneros musicais – podemos dizer que o sambajazz modernizou
o samba se voltando para a batucada afro-brasileira, com forte
investimento nas levadas e nas bases corporais da música de dança.
Enquanto que a bossa nova, sem abandonar a elaboração rítmico-harmônica,
se voltou para a literatura através da voz, o que demanda um toque mais
leve e discreto de bateristas, baixistas e percussionistas, enfim, dos
instrumentistas da seção rítmica para que a letra possa ser ouvida com
clareza.
Essa contenção da bossa nova, se por um lado agrega a
sofisticação da literatura às letras de canção, conforme o modelo
exemplar do poeta Vinícius de Moraes, por outro não a aproxima do
ambiente da dança, da ligação direta com o corpo, presente nas batucadas
e nas gafieiras. Portanto, se hoje se escuta como sambajazz a obra de
músicos como Moacir Santos, Leny Andrade, Johnny Alf, Raul de Souza e se entende João Gilberto como o criador do modelo ideal de bossa nova, na época do florescimento do samba moderno a percepção era muito diversa.
No
ano de 1966, por exemplo, podia-se ler uma crítica no Jornal do Brasil
de dois livros sobre música popular recém lançados que discordavam em
muito, mas tinham um ponto em comum: ambos atribuíam a Johnny Alf, hoje
alocado ao sambajazz, a paternidade da bossa nova: “Ramalho e
Tinhorão são acordes em apontar Johnny Alf (José Alfredo da Silva) como o
pai da Bossa Nova, o que já abre aos historiadores futuros uma
perspectiva otimista: tratando-se de autores de tendências tão
antagônicas há de merecer crédito essa declaração de paternidade” E
em uma lista publicada em 1963, contendo “os principais cantores e
conjuntos de bossa nova” não há menção a João Gilberto. Mas Nara Leão é
citada como “a maior revelação da bossa”, além de Baden Powell, Johnny
Alf, Luis Bonfá, Claudette Soares, Alaíde Costa, Leny Andrade, Agostinho dos Santos, Tamba Trio, Luis Carlos Vinhas, Sergio Mendes, e outros músicos e conjuntos que nem sempre são vistos como bossanovistas hoje.
A
produção da bossa nova e do sambajazz, portanto, mal se diferenciava,
tamanha era a superposição de suas redes de músicos, locais e
repertórios. Assim, apesar desta bipartição do samba moderno operada na
esfera pública através de publicações em livros e jornais, mas que não
está presente nas classificações “nativas” dos músicos à época, a bossa
nova e o sambajazz floresceram, a partir da segunda metade dos anos
1950, no Rio e em São Paulo, como um movimento em rede integrando jovens
das mais diversas camadas sociais e regiões do país. Nesta rede
colaboravam músicos de origens tão diversas como Moacir Santos, de Serra Talhada, Pernambuco, João Donato, de Rio Branco, Acre, João Gilberto, de Juazeiro Bahia, Paulo Moura,
de São José do Rio Preto, São Paulo e Tom Jobim, do Rio de Janeiro, RJ,
entre muitos outros. Também estavam presentes em numerosas gravações de
samba moderno, muitos fluminenses de regiões afastadas da prestigiada
Zona Sul do Rio de Janeiro, como o baterista carioca Édison Machado, de
Madureira, Raul de Souza, de Bangu e Sérgio Mendes, de Niterói, por
exemplo.
4.
Nesse ano de pandemia em que escrevo, 2021, Moacir Santos
completaria 95 anos. Hoje, passadas duas décadas desde o renascimento
da sua música, observo que ela floresceu ainda mais e nos deu muitos
frutos e flores de tipos novos. O som de Santos foi apropriado das mais
diversas formas pelos músicos das novas gerações, um destino ideal para
uma obra criativa como a dele.
Ainda assim, é surpreendente
acessar o Youtube e constatar a enorme popularidade atual das músicas do
maestro pernambucano. Basta digitar o seu nome na plataforma para
descobrir que uma gravação ao vivo da "Coisa nº 5", ou "Nanã", na voz da cantora Céu
teve em torno de meio milhão visualizações, com um arranjo que inclui
sons criados por um DJ. E esta é apenas uma dentre as dezenas de
gravações, instrumentais ou cantadas, disponíveis desta música, várias
com dezenas de milhares de acessos. Outra gravação muito popular na
plataforma traz um tratamento quase erudito das "Coisas", no sentido do zelo em reproduzir o arranjo original e do cuidado com a qualidade da execução musical, pela orquestra Ouro Negro, criada especialmente para regravar a obra de Santos. Uma das muitas gravações de "Nanã"
que podemos acessar nas plataformas conta com a participação do
prestigiado músico (de sambajazz ou de bossa nova?), João Donato, e tem o
autor deste artigo como guitarrista e arranjador, por sorte já nas
casas iniciais dos milhares de visualizações.
Gostaria de, por
fim, me desculpar com o leitor por iniciar uma discussão de difícil
conclusão – e isto em um pequeno artigo! - sobre o lugar da obra de um
compositor no cipoal dos gêneros musicais, sem ter condições de
concluí-la aqui. Posso me justificar evocando a diversidade de
entendimentos a que uma obra de arte está sujeita, assim como as
transformações a que estes entendimentos estão expostos com o tempo, em
se tratando de um álbum que já tem mais de meio século de existência. No
entanto, embora inconclusivo, espero que uma intenção do artigo seja
satisfeita: a de trazer as instigantes Coisas afro-brasileiras, de Moacir Santos,
para o centro de um reflexão sobre as transformações dos gêneros
musicais no período do samba moderno. Com sorte, o Maestro que começou
na banda de Flores (PE) ainda criança, fará florescer mais esse
desdobramento de sua frondosa música.
Gabriel Improta França é músico, pesquisador e professor de música da UNIRIO - Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro. Estudou as Coisas (1965) de Moacir Santos no mestrado em Composição Musical (UNIRIO, 2007) e o movimento do sambajazz no doutorado em Ciências Sociais (PUC-RIO/EHESS, 2015). Lançou três álbuns autorais como violonista e guitarrista e tem tocado nas últimas décadas com artistas como Carlinhos Brown, Maria Bethânia, Caetano Veloso, Roberto Carlos e Jaques Morelenbaum, entre outros.
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