Resenha de Samba

Sambista Getúlio Marinho “Amor” ganha filme

terça, 27 de junho de 2023

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Documentário de Chico Serra retrata pioneirismo da Macumba em disco

Quantos pungentes caminhos e milhas entre céu e mar, África e Brasil, chãos de terra batida os pontos de Candomblé percorreram para chegar até o disco? Esses são os questionamentos que nascem logo ao iniciar o documentário Arruma um Pessoal pra Gente Botar uma Macumba num Disco (2023), do cineasta Chico Serra, um tributo a Getúlio Marinho da Silva (1889-1964), o popular “Amor”. Sambista criado nas sessões de Samba e Candomblé das casas das Tias Baianas no Rio de Janeiro no fim do século XIX e início do século XX, bem como nas rodas de samba e de pernada da Festa da Penha, foi o responsável por gravar pela primeira vez no Brasil Pontos de Candomblé de forma fidedigna, no longínquo ano de 1930.

O sambista Getúlio Marinho “Amor” / Acervo IMS - Coleção José Ramos Tinhorão

O filme de Chico Serra nos possibilita compreender a grandeza e expansividade da iniciativa de “Amor” em propor que cânticos sagrados de matriz africana fossem gravados num país racista e intolerante. Para demonstrar a coragem que Getúlio Marinho teve naquela época, o documentário se inicia com um templo de devoção a Exu, seguido de ogãs que tocam seus atabaques (rum, rumpi e o le) com intensidade, como que em transe e mulheres que baiam descalças num chão de terra batida, o terreiro, solo sagrado de então desses rituais.

Essas imagens não só dimensionam o feito de Getúlio Marinho, como também demonstram que o tom do documentário será em torno do papel de pioneiro na gravação dos Pontos de Candomblé e Umbanda e não de sua trajetória enquanto sambista, como o próprio título do doc. prenuncia. Após essa introdução no universo do sagrado, o filme passa a transitar entre depoimentos, imagens de arquivo e o formato de docudrama, com atores interpretando Getúlio Marinho em conversas e situações imaginadas. 

Nesse sentido, emblemática é a cena em que um Jota Efegê alegórico interpretado por Godô Quincas aparece em diálogo possível com o sambista próximo aos Arcos da Lapa. Um reconhecimento ao grande cronista que sem dúvida alguma retratou com maior riqueza o grande Getúlio Marinho, estando presente em diversos momentos de sua trajetória, entrevistando-o e se mantendo próximo até o findar de seus dias. 

Uma homenagem merecida e sensível prestada por Chico Serra ao saudoso Jota Efegê, que graças aos esforços de Hermínio Bello de Carvalho, teve 4 livros editados com parte de suas crônicas que hoje são fontes valiosas e inesgotáveis de pesquisa sobre músicos e figuras marginalizadas da música popular brasileira, como “Amor”. Aliás, impressiona a semelhança física de Mingo Silva, sambista da nova geração que no documentário dá vida ao grande Getúlio Marinho com boa dose de realismo.

Mingo Silva e Godô Quincas reinventam encontro de “Amor” e Jota Efegê / Acervo Cine Batucada

Dos contemporâneos de “Amor”, nascido em 1889 e falecido em 1964, ou seja, há cerca de 60 anos, Moreira da Silva é o único representante no filme que dá seu depoimento. É bom que se diga que o genial Moreira foi introduzido no meio fonográfico em 1931 justamente por Getúlio Marinho, estreia feita na gravação de dois Pontos de Umbanda: “Ererê” e “Rei de Umbanda”. Embora a atitude de Getúlio Marinho em gravar cânticos religiosos de matriz africana fosse séria e rompesse barreiras sociais, raciais e religiosas, o malandro Moreira confessa que não entendia o que estava cantando, apenas reproduzia o que “Amor” lhe ensinava.

Após a iniciativa de Getúlio Marinho de gravar em disco Pontos de Candomblé em 1930, a pesquisa audiovisual de Chico Serra demonstra que os cânticos sagrados afro-brasileiros passaram a ser mais aceitos, chegando, inclusive, a figurar em filmes. Como o que tem interpretação da célebre cantora Marlene, que entoa um desses cânticos já bem estilizado em forma de apresentação, ou seja, fora do âmbito religioso. Mas esse aparente avanço não significou ou significa aceitação da sociedade, que prosseguiu e prossegue tratando as religiões de matriz africana de forma preconceituosa e racista, como bem destaca o depoimento do Babalaô Ivanir dos Santos.

De qualquer forma, o filme acentua o brilhantismo da iniciativa de Getúlio que, numa vigorosa escolha de gravar pontos de Candomblé tradicionais rotulando-os devidamente como “Macumba”, não apenas se autoafirmou, como também afirmou o seu próprio povo, o povo negro brasileiro. Um retrato múltiplo de “Amor” como sambista fica por conta do historiador Luiz Antonio Simas, ao passo que informações preciosas sobre a sua trajetória são fornecidas pelo sociólogo Reginaldo Prandi.

Porém, o clímax do filme é, sem medo de errar, a presença do saudoso Hélio Antero Dias, filho do legendário Mano Eloy (1889-1971), que na época de seu depoimento para o documentário contava com mais de 90 anos. Visivelmente emocionado, Seu Hélio ao mesmo tempo que escuta, solfeja o Ponto gravado por seu pai, mirando longe seu olhar, como que avistando Seu Eloy entoando aquele cântico sagrado. 

Um pequeno detalhe que talvez possa passar desapercebido revelado por Hélio é que Eloy na intimidade familiar, ao cantar “Macumbembê, macumba orirá / Viva a rosa macumbembê”, homenageava Rosa, nome de sua segunda esposa. Uma prova de como esses cânticos, após ultrapassarem a barreira do sagrado, se recriam e se transformam, passando a habitar o campo afetivo e a vida íntima de quem os conhece.

 Pai de Hélio Carretel (foto), Mano Eloy conferiu a autenticidade necessária a gravação dos Pontos de Candomblé / Arquivo O Globo

Mano Eloy foi o grande parceiro de “Amor” na difícil e insubmissa empreitada de lançar o gênero “Macumba” em disco, interpretando os pontos que Getúlio assina, daí a importância da aparição no filme de seu filho, o popular Hélio Carretel do Império Serrano. O historiador Sormani Silva, que estudou de perto a trajetória de Mano Eloy no livro “Escola de Samba Deixa Malhar: Batuques e outras sociabilidades no tempo de Mano Elói na Chácara do Vintém entre 1937 e 1947”, sintetiza: “O depoimento de Hélio Antero [para o doc.] recupera de forma tênue algo entre o dizível e o que se silencia”.

Aliás, a gravação do “Ponto de Inhansan” que Hélio solfeja foi tão impactante para a época na qual foi lançada, que o sempre rigoroso e atento musicólogo Mário de Andrade chegou a classificar o disco de estreia de Eloy e “Amor” como “de grande importância folclórica”, ou seja, registrado tal qual se ouviria num terreiro de Candomblé.

Juntamente com Jota Efegê, o historiador José Ramos Tinhorão foi dos poucos a entrevistar Getúlio Marinho em vida. Escrevendo para a série de artigos “Primeiras Lições de Samba” do Jornal do Brasil, esteve com o sambista em 1962 na casa de cômodos onde ele morava, uma espécie de pensão da época. Este encontro foi retratado no livro essencial “História Social da Música Popular Brasileira”, de 1990, obra em que Tinhorão revela o endereço onde a conversa aconteceu, na esquina da Rua dos Inválidos com a Rua Riachuelo, no bairro da Lapa. 

Os dados biográficos de Getúlio são tão escassos que esta simples informação é uma das mais relevantes que se tem notícia em sua trajetória, pois demonstra que mesmo com o sucesso de crítica e relativo êxito de vendas de discos alcançado, “Amor” viveu seus últimos anos em dificuldades e carência material. Getúlio Marinho findou os seus dias morando num quarto de um casarão de estilo neoclássico do século XVIII que é tombado - não por nele ter residido um dos mais notáveis sambistas de nosso país, mas por seu valor histórico - e está em visível estado de ruínas e abandono.

É em frente a este casarão, antiga casa de cômodos, que Chico Serra gravou cenas com o sambista Mingo Silva cantando e tocando pandeiro, interpretando “Quilombô”, com acompanhamento de Phelipe Ornellas no cavaquinho e Leo Fernandes no violão 7 cordas. Este ponto foi gravado originalmente por um enigmático João Quilombô, que alguns dizem se tratar do próprio Getúlio Marinho. 

 Leo Fernandes, Phelipe Ornellas e Mingo Silva reinterpretam Pontos de “Amor” / Acervo Cine Batucada 

Chico Serra é diretor do curta de ficção experimental “Operação Morengueira” (2005) e é adepto do cinema não tradicional, de autor, de linguagem não linear, em oposição ao cinema comercial. Desse modo, a intenção de Chico neste documentário não é estruturar de forma organizada a trajetória da macumba em disco ou a de Getúlio Marinho, mas a “divulgação de expressões ligadas à liturgia africana naquelas novas invenções musicais”, conforme fala do diretor.

É preciso situar a figura de Getúlio Marinho “Amor” no cenário da música popular brasileira para se ter ideia da grandeza deste documento produzido pelo cineasta Chico Serra. Getúlio foi contemporâneo de Caninha (1883-1961), João da Baiana (1887-1974), Donga (1889-1974), Pixinguinha (1897-1973) e Heitor dos Prazeres (1898-1966), sendo iniciado no mundo do samba pelos bambas pioneiros Hilário Jovino Ferreira (1872-1933), Marinho-Que-Toca, Tia Ciata (1854-1924), Tia Bebiana, Tia Gracinda e tantos outros bambas e Tias do Samba dos primórdios. 

Nascido em 1889 em Salvador, Bahia, cedo chegou ao Rio de Janeiro, onde ainda pequeno passou a frequentar a Festa da Penha e as casas das Tias Baianas, na companhia de seu pai, o grande cavaquinista Marinho-Que-Toca. Na década de 1920 enfrentou alguns problemas com a justiça, o que talvez tenha influenciado na sua estreia relativamente tardia em disco se comparada aos seus pares, o que veio a se dar apenas em 1929. 

Durante parte da década de 1920 Getúlio teve a sua fé testada e, como a comprovar a sua convicção religiosa, em 1930 uma ideia toma conta de seu ser: a decisão de gravar Pontos de Candomblé autênticos em disco. Oferece a ideia a alguns cantores profissionais que, temendo a inici