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Se o Brasil fosse o país das cantoras, haveria mais mulheres vivendo de música

terça, 22 de março de 2022

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O Brasil tem mais de 209 milhões de habitantes, com cerca de 8 milhões de mulheres a mais do que homens. No entanto, os números mostram que elas ainda estão sub-representadas no mercado da música. Para suscitar uma reflexão no Dia Internacional da Mulher de 2018, a União Brasileira dos Compositores (UBC) lançou o relatório “Por elas que fazem a música” com um levantamento que revelou disparidades entre mulheres e homens associados. A pesquisa mostrou que, dentre todos os associados (cantores, compositores, musicistas e produtores) que arrecadavam direitos autorais no ano anterior, apenas 14% eram mulheres. Os homens eram 90% dos arrecadadores e eles recebiam, em média, 28% a mais do que elas. Lançado junto a uma matéria jornalística, para a qual entrevistei diversas cantoras e compositoras, aquele documento trouxe de volta um desconforto que já havia me incomodado quatro anos antes.

Em 2014, eu assinava a pesquisa, as entrevistas e roteiros dos episódios do programa Mulheres do Brasil, que o Canal Bis exibiria destacando dez cantoras e compositoras brasileiras: Joyce Moreno, Fernanda Abreu, Zélia Duncan, Ana Carolina, Fernanda Takai, Pitty, Vanessa da Mata, Mart’Nália, Isabela Taviani e Tulipa Ruiz. De todas elas, vieram histórias de batalhas internas e externas, de aguerrimento, de luta contra preconceitos, de coragem para expor o que têm de mais íntimo: a composição. Em 2018, eu já estava no segundo ano do doutorado e havia gravado um álbum no qual estreei como compositora. Ou melhor, como cantautora: das doze faixas, sete eram minhas, sendo duas em parceria. Depois das inspiradoras entrevistas com as cantautoras que estrelaram o Mulheres do Brasil, transbordou de mim uma série de composições que eu não imaginava ser capaz de criar. As gravações aconteceram entre 2015 e 2016 e o lançamento do álbum Mundo ficção se deu em 2017. Com essa nova experiência me mostrando um caminho diferente do que eu trilhei como jornalista de música, somada aos traumas que eu absorvi das histórias das cantautoras que entrevistei para o Mulheres do Brasil, com uma pitada de indignação devido ao resultado do relatório da UBC, fizeram-me querer estudar a história das cantautoras do Brasil. 

No segundo semestre de 2018, embarquei para um intercâmbio na Brown University e, em quatro meses, acessei uma vasta bibliografia que compreendia desde o processo de inclusão das mulheres na música clássica do século XIX até seu posicionamento no atual circuito da música eletrônica. Sendo o Brasil um país com uma história tão particular e dotado de gêneros musicais tão originais, aquela bibliografia me embasava, mas não respondia uma série de perguntas que eu ainda gostaria de fazer a outras delas. Curiosamente, o que eu já havia lido no meu país – biografias e autobiografias de cantautoras, livros sobre movimentos musicais ou os mais teóricos sobre estudos da canção – também não resolviam várias das questões que vinham me instigando: até porque a maioria foi escrito por homens. Mais do que conhecer a história das cantautoras do Brasil, eu queria repetir a experiência do programa de TV, dando voz a elas. Além de jornalista e cantautora, sou biógrafa, mas, para essa pesquisa, a história de vida dessas mulheres só me interessava se viesse junto com suas impressões sobre suas próprias vivências.

Não é de hoje que as mulheres vêm lutando para serem ouvidas na sociedade e pedindo mais oportunidades no mercado de trabalho. No entanto, é recente a onda de movimentos femininos por mais espaço no mundo da música. A cerimônia Grammy de 2018 rendeu protestos contra o abuso, o assédio e a subestimação da capacidade das mulheres. De igual maneira, pesquisas recentes estão chamando a atenção para a disparidade entre homens e mulheres quando o assunto é música. Nos últimos seis anos, por exemplo, as listas Hot 100 da Billboard só tiveram 22% de músicas interpretadas por mulheres, 12% de composições femininas 2% de canções produzidas por elas, mostrou um levantamento da professora Stacy Smith, da Universidade do Sul da Califórnia (clique aqui). Tal desajuste também acontece no mercado brasileiro. 

Antes de começar a marcar as entrevistas, inconformada com os números da UBC, procurei o Escritório Central de Arrecadação e Distribuição (Ecad) para investigar se, em nível nacional, a realidade era diferente. Para minha surpresa, os números eram ainda mais baixos: em 2020, com base nos recolhimentos de 2019, as mulheres eram apenas 7,6% dos arrecadadores de direitos autorais, enquanto os homens eram 82,46%; as mulheres arrecadaram 91,72% a menos que os homens naquele ano e foram apenas cinco na lista dos maiores arrecadadores do país, na qual 93 homens figuraram (Como nem todos os cadastros possuem a informação de gênero do titular, os que não possuem estão classificados como “desconhecido”). Na lista em que figuram apenas cantautores (cantores e compositores), as porcentagens continuavam praticamente a mesma: as cantoras e compositoras que arrecadaram em 2019 foram 7,39% do total, enquanto os homens foram 82,61%; as cantoras e compositoras arrecadaram 91,61% a menos que os homens, e elas eram apenas cinco na lista dos maiores arrecadadores do Brasil, na qual os homens eram 93. 

No fim de 2019, momento em que eu tive uma participação ativa em um movimento feminino no mercado da música, como integrante do coletivo Women in Music Brasil – entre outras ações, fui convidada ser uma “embaixadora”, ou seja, uma profissional do meio a indicar nomes ao Women’s Music Event, primeira premiação de música dedicada só às mulheres – outros dados vieram a me incomodar um pouco mais. Com a divulgação da pesquisa “Mulheres na indústria da música no Brasil: Obstáculos, oportunidades e perspectivas”, publicada pela Data SIM, descobri que a cena musical conta com 70,26% mulheres brancas e apenas 10,95% pretas, 15,03% pardas, 2,78% amarelas e 0,98% indígenas. Entre as quase 1.500 entrevistadas – cantoras, compositoras, instrumentistas, produtoras etc – 62,25% eram solteiras, 76,47% disseram não ter filhos e 91,67% se declararam cis-gênero. O Brasil é enorme, mas 71,2% das mulheres que trabalham com música estão concentradas na região Sudeste. Entre elas, a minoria, 20,6%, tem apenas um trabalho e consegue viver só de sua atuação na música: 24,5% tem dois trabalhos e 23,2%, três. Quase 21% confessaram não se sentir confortável no ambiente de trabalho por ser mulher e quase 30% disseram não se sentir confortável e apoiada no ambiente de trabalho por ser mulher. 

Com esses números em meu poder e muitas declarações de mulheres retomando o passado para tentar explicar o presente, não tive mais dúvida: era nas cantautoras veteranas da música brasileira que eu encontraria as respostas para minhas perguntas, afinal, foram elas a romper a mais ousada barreira do cenário musical: a da composição. Atividade antes atribuída aos homens, a composição é mais do que apenas a escrita de uma letra e a criação de uma melodia. A composição é um espaço de imersão intimamente ligada ao viver. Imaginei que, em se tratando de mulheres reforçando assuntos femininos e os expondo com suas próprias vozes, descobriria que temos a música assumindo o compromisso de fazer política, ultrapassando as fronteiras de gêneros e mostrando que o subalterno pode falar em um mercado dominado por um conservadorismo machista. Minha pesquisa passou a ter por objetivo reconstituir criticamente a história das cantoras compositoras do Brasil, ou seja, das cantautoras, através de entrevistas com uma representante de cada um dos principais gêneros musicais do Brasil: Anastácia (forró), Martinha (rock), Joyce Moreno (MPB), Leci Brandão (samba), Roberta Miranda (sertanejo), Sandra de Sá (black music) e Margareth Menezes (axé music). 

Venho trabalhando nisso desde 2014, tendo me dedicado quase que exclusivamente entre 2018 e 2020, ano em que defendi minha tese, intitulada “Cantautoras: Um ensaio sobre sete mulheres e sua importância na música popular brasileira” (parte do texto acima integra a introdução). A ideia é transformar essa pesquisa em livro, curso, palestra, ou o que tiver que fazer para gritar ao mundo que o Brasil não é o país das cantoras nem das compositoras, muito menos das instrumentistas, senão elas juntas não seriam menos de 8% dos arrecadadores de direitos autorais no Brasil. A ideia é levar esse tema a público escrito, ensinado, ministrado (ou o verbo que for) pelo texto, voz, fala de uma mulher, que não só vive experiências parecidas com as que ouve das veteranas como, exatamente por causa disso, está mais apta a debater o assunto. Sobre ser uma biógrafa mulher, já soltei o verbo em um dos episódios do podcast “Caçadores de Histórias: Por trás das biografias”, que dividi com o jornalista Julio Maria em 2021 e que vem sendo divulgado aqui no IMMuB. Para celebrar o Dia Internacional da Mulher, 08 de março, indico a audição e a reflexão sobre o que podemos fazer ou de quem podemos cobrar mais respeito ao papel da mulher na indústria, nos escritórios, na escrita e na música. 


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