As Canções que Você Fez pra Mim

Sim, é o Cacique de Ramos

terça, 16 de janeiro de 2024

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Uma das imagens mais marcantes do carnaval carioca desde a década de 1960 é, sem dúvida, o desfile do Cacique de Ramos. Milhares de foliões fantasiados de apaches ocupavam a Avenida Rio Branco e mostravam como o Velho Oeste foi devorado  pelo carnaval tupiniquim. A agremiação de Ramos foi, com suas rodas de samba à sombra da tamarineira sagrada, uma espécie de doce refúgio do samba diante da explosão midiática do rock nacional nos anos de 1980 – e só isso bastaria para dar ao bloco um lugar de importância maior no panorama cultural brasileiro e, particularmente, na história do samba. O terreiro do Cacique de Ramos é um lugar de definição do espaço difícil em relação aos bairros da região da Leopoldina. A Rua Uranos, número 1326, sede do bloco, para alguns é Olaria, pois é em frente da Estação de Olaria. Apesar disso, na disputa entre Ramos e Olaria, no imaginário carioca ganha Ramos. A imagem do Cacique vai ser sempre mais forte que o logradouro determinado pelo trem. É Ramos e estamos conversados. 

Ramos: A Capital do Subúrbio da Leopoldina 

O bairro de Ramos tem um papel decisivo na história do carnaval da cidade do Rio de Janeiro. Pelas ruas da região, na primeira metade do século XX, desfilavam clubes carnavalescos como o Ameno Heliotropo e o Endiabrados de Ramos, além de blocos de todos os tipos, como o Sai como Pode, o Paixão de Ramos, o Paz e Amor e o Recreio de Ramos – o mais importante deles ao lado do lendário Cacique de Ramos. A praia de Ramos foi também um dos principais redutos de uma das manifestações mais interessantes do carnaval da cidade; o banho de mar à fantasia. Usando as areias das praias como avenidas, blocos carnavalescos exibiam-se competitivamente, com fantasias feitas com papel crepom e vestidas por cima das roupas de banho. Ao final do desfile, os componentes caíam na água, em banhos coletivos complementados por doses generosas de cachaças e cervejas. As origens da tradição são incertas; segundo algumas fontes, o fuzuê marítimo teria surgido na Ilha do Governador, na década de 1940. A popularização entre os sambistas dos blocos levou à inclusão do banho de mar à fantasia no calendário turístico oficial da cidade, da qual fez parte até 1978. Foi de uma dissidência do bloco Recreio de Ramos, no final da década de 1950, que surgiu, sob a liderança do farmacêutico Amaury Jorio, a escola de samba Imperatriz Leopoldinense. O nome da escola foi escolhido sem maiores polêmicas. A elaboração da bandeira, porém, gerou algumas controvérsias, já que várias propostas para o pavilhão foram apresentadas. Prevaleceu a ideia de se utilizar como símbolo da agremiação uma coroa dourada circundada por onze estrelas representando os bairros do subúrbio da Leopoldina. Dez estrelas menores representam os bairros da Penha Circular, Brás de Pina, Cordovil, Parada de Lucas, Vila da Penha, Vigário Geral, Manguinhos, Bonsucesso, Olaria e Penha. A estrela maior representa Ramos, o local de fundação da escola. 

Olha, o Cacique de Ramos, aí, gente

Calhamaços antigos sobre as origens do Cacique dão conta de que tudo começou com o bloco “Homens das Cavernas”, criado em 1958. A agremiação carnavalesca encabeçada por moradores de Ramos foi fundada para substituir o Recreio de Ramos que, nessa altura do campeonato, estava mal das pernas. Três anos depois, em 20 de janeiro de 1961, o nome foi trocado para Cacique de Ramos. O bloco nasceu no dia de São Sebastião, padroeiro da cidade, consagrado e sincretizado pelos tambores com o orixá Oxóssi, protetor do bloco. Há aí um fascinante cruzamento. O Rio de Janeiro é uma cidade oficialmente fundada para expulsar franceses e apagar a cidade tupinambá que, tempos depois, quis ser francesa para negar que é profundamente africana e tupinambá. Espada em riste, diz a história oficial que São Sebastião apareceu milagrosamente na batalha de Uruçumirim para lutar contra os índios tupinambás que ameaçavam o projeto português na Guanabara. No fenômeno do amálgama da fé, São Sebastião cruzou flechas com Oxossi, o caçador. Oxóssi, por aqui, é protetor dos tupinambás: aqueles mesmos que o santo católico ajudou a matar. São os tupinambás que baixam nos terreiros, lançando as suas flechas de cura, no dia do santo flechado. Baixam nas frestas da festa do padroeiro, subvertem tudo e mandam flechas para todos os cantos. Fundado no dia de São Sebastião, protegido por Oxóssi, o Cacique tem como símbolo carnavalesco um autêntico apache pele vermelha dos filmes de Tom Mix, um dos primeiros ídolos do cinema mudo e dos filmes de cowboys do velho oeste norte-americano. 

A troca de nome do bloco ocorreu por intermédio de seus fundadores, oriundos de três famílias: Félix do Nascimento (Ubirajara, Ubirany e Ubiracy), Oliveira (Walter, Chiquita, Sereno, Alomar, Jorginho e Mauro), e Espírito Santo (Aymoré e Conceição). O trio de irmãos Félix do Nascimento tinha como pais Domingos e Mãe Conceição, filha de santo iniciada no candomblé por Mãe Menininha do Gantois, a grande yalorixá baiana. A própria Mãe Menininha do Gantois orientou, através do jogo de búzios, que os fundadores do bloco procurassem um terreno onde houvesse árvores, para que no lote dessem frutos. E fruto foi o que não faltou: Zeca Pagodinho, grupo Fundo de Quintal, Luiz Carlos da Vila, Jorge Aragão, Sombrinha, Arlindo Cruz, Beto Sem-Braço, dentre outros.  Mãe Conceição cuidou de arrumar a casa. Colocou um preceito das tamarineiras (duas e enormes) “que são da poesia guardiãs” para dar sombra e abrigar a rapaziada. Reza a tradição que as tamarineiras realizam os pedidos das pessoas que por ali passam, conforme conta Ubirajara Félix do Nascimento, o Bira Presidente. Bira é reconhecido pelo cargo que ocupa desde o primeiro dia de atividade do bloco e teve papel mais do que relevante na transformação do Cacique em, mais que agremiação carnavalesca, uma das instituições culturais mais importantes da cidade. 

Apesar da fundação do Cacique de Ramos ter ocorrido no início da década de 1960, foi só no final da década seguinte que o Cacique de Ramos chegou ao auge da forma. Em 1977, um grupo de peladeiros resolveu bater uma bolinha uma vez por semana, nas quartas-feiras, na quadra. Depois do futebol surgia o churrasco, desciam várias cervejas de casco escuro e, como consequência desse fuzuê, começava a roda de samba. Pegou! Levada ao pagode da tamarineira por Alcir Portela, ex-jogador de futebol, a “comadre” Beth Carvalho conheceu a roda do Cacique de Ramos. Aquilo ia influir por toda a vida dela. A dupla dava-se muito bem, eram amigos, gostavam de bater uma perna pelos sambas do subúrbio carioca. Apesar de não ser chegada numa bola, a botafoguense Beth se apaixonou pelo que viu e ouviu e jogou nas onze. Virou uma espécie de fiadora, ou melhor, madrinha daquele movimento todo. Em 77, Alcir vira-se para Beth e diz, “vou te levar num lugar que você vai gostar”. E ela, “vamos nessa, onde é?”, e ele, “No Cacique de Ramos”. O resto veio numa progressão fulminante! 

"Porque quando eu estava naquele negócio de carnaval, que eu sempre tive, o Cacique e o Bafo eram os dois blocos mais fortes, sendo que eu frequentava o Bafo mas eu achava o Cacique mais interessante no desfile, porque tinha um negócio de tacape, tinha uma roupa de índio e tinha aquele samba (cantando) “Nesse carnaval não quero mais saber, ê, ê, de brincar com você”. Eu gostava muito desse samba e de um samba da Chiquita, irmã do Sereno, ela que já morreu, uma grande mulher, uma mulher que cantava um samba diferente de todo mundo, eu tenho a Chiquita filmada… "

Doce Refúgio

A partir daí Beth Carvalho virou madrinha do Cacique de Ramos, do bloco. Em 1980, saiu o primeiro disco do Fundo de Quintal, o lp Samba É No Fundo Do Quintal, e lá ela se tornou madrinha do Fundo de Quintal. O Disco de estreia do grupo Fundo de Quintal no qual trazia Bira, Ubirany, Jorge Aragão, Sereno, Almir Guineto, Neoci e Sombrinha, aquela turma. Eles começaram a chamar a Beth Carvalho de madrinha do Cacique, depois de madrinha do Fundo de Quintal… Depois do Arlindo, do Sombrinha, do Luiz Carlos da Vila, do Zeca Pagodinho…

A instrumentação utilizada na roda era o elemento mais peculiar nessa história toda: o repique de mão, banjo e o tantã caíram no samba, ao lado do cavaquinho, do violão e do pandeiro. Ubirany tocava um repique fechado em um dos lados e completava o pagode batendo com um anel no instrumento, o repique de mão. Almir Guineto se inspirou na ideia de seu parceiro musical Mussum e adaptou o corpo do banjo, instrumento tradicional da música folk norte-americana, ao braço do cavaquinho. Além da qualidade do som, a armação reforçada do banjo reduzia o risco de rompimento de cordas. O banjo passou a ser utilizado com apenas quatro cordas, utilizando o mesmo número de trastes e a afinação em ré-sol-si-ré do cavaquinho. Sereno mudou a história da percussão do samba brasileiro ao bater a tradicional tambora em cima, e não entre as pernas. É o tantã, instrumento com o diâmetro variável: os mais usados são de 12”, conhecidos como rebolo, tantã de corte ou tantanzinho, e o de 14”, que possui um som mais grave como o do surdo. A ideia genial de Sereno foi exatamente a de usar o tantã como substituto do surdo de marcação. A nova instrumentação trouxe uma dinâmica diferente ao bom e velho samba. Saía assim, do terreiro da Rua Uranos, o ritmo para vários pagodes de fundos de quintal. O grupo Fundo de Quintal, propriamente dito, surgiu profissionalmente na passagem da década de 1970 para 1980 e tornou-se o mais importante e influente em seu campo de atuação. A primeira formação do Fundo de Quintal contou com Bira Presidente, Almir Guineto, Neoci, Ubirany, Sereno, Jorge Aragão e Sombrinha. Logo no ano seguinte, Arlindo Cruz entraria na vaga de Almir Guineto. 

Esse tipo reunião informal que proporcionou o nascimento do Fundo de Quintal e deu nome ao grupo (nos fundos de um velho quintal suburbano) passou a designar uma forma muito procurada de diversão popular, os “pagodes de fundo de quintal” ou, simplesmente, os “fundos de quintal”. Em tempo: A palavra pagode está presente na língua portuguesa, na acepção de “festa ruidosa”, desde o século XVI. O termo pagode ganhou, no Rio de Janeiro, primeiro, acepção de “reunião de sambistas”, que se estendeu depois às composições nelas cantadas, para então, a partir da década de 1980, designar um estilo de composição e interpretação do samba. Na acepção de festas ou festividades, desde os primeiros anos da República tem-se notícia de pagodes em casas de famílias cariocas, assim como nos terreiros das escolas de samba e em festas públicas na Penha e da Glória. Porém, a denominação ganhou força e se expandiu mesmo no Rio a partir da década de 1970, a partir dos pagodes do Clube do Samba (no Méier), Tia Doca em (Oswaldo Cruz), Pagode do Arlindinho em (Cascadura e depois na Piedade), Cacique de Ramos, dentre outros. Por uma associação meio besta, me lembrei  da sentença definitiva de Luiz Carlos da Vila: “A maior invenção do Homem é a roda. A segunda é a roda de samba”. Mas já estou divagando e, desculpe. O grupo Fundo de Quintal foi, sem sombra de dúvida, o grande responsável pela difusão do estilo. Já temos um timaço, meia dúzia de craques, um ritmo e uma madrinha. Só faltava o hino. 

Falei de Luiz Carlos da Vila e volto a ele. O samba Doce Refúgio, que acabou se transformando em uma espécie de hino informal do Cacique de Ramos, surgiu de maneira inusitada, num daqueles episódios que ressaltam a inspiração do poeta. Luiz Carlos da Vila relatou, em diversos depoimentos, que estava, um dia, tomando uma cerveja com Ubirany, embaixo das tamarineiras enormes que abrigam os passarinhos nas manhãs. Então caiu uma folha dentro da cerveja. Com a palavra, o poeta: “Não me lembro se a folha caiu no meu copo ou no dele. Aí disse o Ubirany: ‘Você não é poeta? Faz uma música pra isso aí’. Qualquer coisa que acontece comigo as pessoas logo pensam que vai dar poesia, sei lá o quê”. Assim surgiu o Doce Refúgio. Que nem todos parassem para ouvir, vá lá. Mas alguém, alguém deveria parar. Um funcionário do Banco do Brasil, um soldado, um velhinho de camisa fina e imaculada, uma Beth Carvalho. Para ela, foi uma experiência inédita. Beth não só ouviu “Quando ele vai para as ruas \ A vida flutua num sonho real É o povo sorrindo e o Cacique esculpindo \ Com mãos de alegria o seu carnaval \ É o Cacique” como gravou a composição no disco Suor no Rosto em 1983. Fala Cacique de Ramos

“Sim, é o Cacique de Ramos 

Planta onde em todos os ramos, 

Cantam os passarinhos nas manhãs….”. 

Suor no Rosto faz parte de uma discografia fundamental que Beth gravou é, em larga medida, sintetiza o encontro que a cantora promoveu entre a tradição do samba urbano do Estácio de Sá e das velhas guardas de Mangueira e Portela, e a potência do novo samba carioca que estava se disseminando a partir das tamarineiras do Cacique de Ramos.   

Bibliografia:

BRUNO, Leonardo. Beth Carvalho: De pé no chão. Rio de Janeiro: Cobogó, 2022. 

LOPES, Nei e SIMAS, Antonio Simas. Dicionário da História Social do Samba. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2015. 

SIMAS, Luiz Antonio e CUNHA, Diogo. Princípio do infinito: - um perfil de Luiz Carlos da Vila. Rio de Janeiro: Numa Editora, 2018. 

Souza, Tarik de. MPBambas - Volume 1: Histórias e Memórias da Canção Brasileira. São Paulo: Kuarup, 2016. 

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