Sobre violões
Sou luthier de profissão. Há mais de 30 anos milito nessa super rendosa atividade e, portanto, vi muita coisa. Dizem que o diabo não sabe muito por ser o diabo, mas por ser velho; ser velho, mesmo sem ser o sr Capeta, nos ajuda a entender melhor as coisas.
Quando comecei havia duas grandes escolas na luteria: a dos violões de pinho e a dos de cedar.
Aqui cabe o parêntese: nomes de madeiras são uma enorme encrenca. Jacarandá, em inglês, é rosewood. A tradução literal seria madeira, ou pau, rosa. Existe uma madeira chamada pau rosa que não é jacarandá... Cedar tem o mesmo problema: a tradução é cedro, mas cedro é uma madeira diferente da que é usada no tampo. A do tampo é a Thuja Plicata, norte-americana; a outra, nacional, usada em braços, é a Cedrella Fissilis. Voltando...
Então tínhamos um pessoal que curtia tampos de cedar e outro que preferia tampos de pinho (pinho europeu, spruce, abeto – que durante anos foi chamado, erroneamente, de “pinho sueco”). Já adianto que sou dos de pinho. Até aquele momento, no mundo do violão “clássico’, tínhamos o seguinte panorama: Julian Bream (Inglaterra, 1933) usava pinho, John Williams (Austrália, 1941) se bandeara para o cedar. Andrés Segovia (Espanha, 1893/1987), o pai de todos, passou a vida tocando em pinho; na velhice optou pelo cedar. Íamos todos muito bem até que as coisas começaram a mudar no mundo violonístico.
Tom Humphrey (EUA 1948/2008) desencavou de um violão antigo a escala elevada. Ela, ao invés de seguir colada ao tampo, passava a ficar bem mais alta, em tese facilitando o acesso às casas mais altas. Chamou de modelo Millenium, e na prática não mudava grande coisa. Aí Greg Smallman (Austrália 1947) inventou uma nova forma de fazer violões...
Uma traquitana complicada. Não vou entrar em explicações técnicas, mas seu instrumento tinha MUITO volume. Para alguns, foi um divisor de águas. John Williams se bandeou correndo para ele, e levou muita gente atrás, Outros construtores daquele país seguiram seu estilo, que ficou conhecido como Escola Australiana. Muito volume, pouca sutileza...
Pouco depois, e não vou citar nomes pois trata-se de tema controverso, possivelmente na Alemanha, inventaram o Double Top (DT). No meio do tampo do violão, uma espécie de colmeia de plástico oferecia ao executante mais facilidade sonora, com um pouco mais de volume aparente que os normais (mas um pouco menos que os australianos). A partir daí, virou bagunça.
Dos nomes mais famosos, Manuel Barrueco (Cuba 1952) e David Russell (Escócia, 1953) logo correram para os DTs. Voltemos um pouco.
Até mais ou menos a metade do século XIX as medidas do violão variavam muito. Coube a Antonio de Torres (Espanha 1817/1893) definir as medidas quase finais do violão – de pinho. Mudou pouco ao longo dos anos, foi levado às alturas pelo luthier alemão Herrman Hauser (Alemanha, 1882/1952), e reinou soberano até a década de 60 do século XX. Ali começou a se popularizar o cedar, graças ao luthier José Ramirez III (Espanha, 1922/1995). O violão em si, em sua construção, teve poucas mudanças. O luthier Manuel Contreras (Espanha, 1933/1994) fez um violão com dois tampos (“doble tapa”, literalmente o mesmo nome do double top, mas outra concepção) e um treco estranhíssimo, baseado num desenho do professor Abel Carlevaro (Uruguai, 1916/2001), em forma de B, não o tradicional 8, ambos sem sucesso. Uma dupla, um físico e um luthier, inventou um bicho esquisito (não vou citar o nome), igualmente sem sucesso, sem contar o violão popular, com o Ovation, com estrutura oval de fibra de vidro, o Godin, sem corpo, e muitos etcs.
Voltando ao presente, os DT estão dominando o mundo. Temos de tudo, modelos Millenium com double top e construção australiana, tudo junto, numa enorme salada. Isso, a meu ver, acaba com a forma como conhecemos o violão ao longo dos anos. Nenhum outro instrumento tem tanto colorido, tantas nuances tímbricas, quando o nosso. Não temos volume. Com esses instrumentos temos um pouco mais. Muito pouco. Não há necessidade de “cavar” o som, um toque mais suave resolve. O resultado é que desaparecem as nuances. Simplificando, um violão tradicional de pinho é como se tivesse um potenciômetro de volume marcando de 1 a 10. Ele usa todo o espectro com facilidade, ponto a ponto, até o 8. Daí para a frente, precisa de mais cuidado. Um australiano começa no 4. Passa pelo 7 e vai ao 10. Nenhuma sutileza. O DT vai bem, mas 1, 3, 6, 8... É bem mais sutil, mas ainda assim sem as minúcias. Claro que estou sendo extremamente simplista! Mas quem consome isso? Uma galera que cresceu ouvindo MP3. Um círculo vicioso.
Sim, meu tom é crítico. Sim, muita gente boa discorda de mim, gente melhor que eu. O Brasil é dos poucos lugares do mundo em que o violão tradicional ainda tem muito espaço. E cabe a mim defender o que gosto. Não vou entrar numa passeata pelo consumo do jiló, nem publicar anúncios em defesa do cominho. Mas vou batalhar, sempre, pelo som com que cresci, que busco nos instrumentos que construo. Caso perca a luta, tudo bem. Tenho gravações suficientes para me suprir até o fim dos tempos. Algumas em MP3.
Mas de 320...
Fonte da imagem: https://unsplash.com/@jonnyswales1989
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