Colunista Convidado

Timbres, texturas e poesia aguda em “Sob o signo do amor”, novo disco de Dulce Quental

sexta, 30 de setembro de 2022

Compartilhar:

A cantora e compositora carioca Dulce Quental decolou com “Avião de Combate”, em 1984, em pleno BRock, a bordo do quinteto feminino Sempre Livre. Vivia-se os estertores da repressão da ditadura militar e o título do grupo – um absorvente feminino – afrontava tabus pudicos da época, como aconteceria com o aparecimento, no ano anterior, do punk rock baiano do Camisa de Vênus (o preservativo masculino ainda não tinha virado item de saúde pública, por conta da AIDS), e, em 1987, com a coleção explícita de flamejantes calcinhas de “Katia Flávia, a Godiva do Irajá”, por Fausto Fawcett e os Robôs Efêmeros. Catapultada pelo êxito da faixa central “Eu sou Free” (Patrícia Travassos/ Ruban), Dulce, a vocalista do grupo, partiu em carreira solo com seu “Délica”, em 1985, onde já misturava rock, pop jazz & bossa, algo natural para quem começou pelo sax alto, e tinha como ídolo, o heráldico Paul Desmond, do Dave Brubeck Quartet. 

Agora ela desembarca o novo solo, “Sob o Signo do Amor” (Cafezinho), ancorada numa base de timbres e texturas semoventes, providenciada pela nata da vanguarda de instrumentistas cariocas, capitaneados pelos irmãos multinstrumentistas Pedro Sá (baixo, guitarras) e Jonas Sá (teclados, programações, sintetizadores), também produtores e arranjadores (com Dulce) do disco. A eles, se aliam em faixas específicas, Itamar Assiere (piano), Jaques Morelenbaum (cellos e arranjos de cellos), Mariano Gonzales (bandoneon e percussão de bandoneon), Thiago Nassif (guitarra). E mais: Zé Manoel (órgão, piano Fender Rhodes), Marcelo Costa (caixa com vassourinha e pratos), Thiago Queiroz (sax barítono) e Arthur Kunz (programação), seu parceiro autoral na audaz “Amor Profano”, enevoada por erotismo explícito. “Boca a boca/ homem e fêmea/pelo em pelo/ homem e homem/ gota a gota/ púbis, pênis, coxa, língua, dente/ dedo, vulva, esperma”. Até chegar a esse novo solo autoral, DQ teve um percurso artístico multidisciplinar.

Foto de Nana Moraes

Formada em Comunicação Social, escreveu resenhas de livros para o Caderno Ideias, do finado Jornal do Brasil, artigos para a Revista de Estudos Femininos da UFRJ e ainda organizou os arquivos do advogado, político, chanceler e ministro da Fazenda do governo João Goulart, San Thiago Dantas (1911-1964), seu tio avô. Também na música sua trajetória não foi linear. Após “Délica”, ela lançou “Voz azul” (1986), produzido pelo Paralama Herbert Vianna. Ele compôs para ela “Caleidoscópio”, incluído na trilha da novela “Brega & Chique”, da TV Globo. Em “Dulce Quental” (1988), mesclavam-se, da vanguarda paulistana de Itamar Assumpção (“Mulher dividida”) e Arrigo Barnabé (“Numa praia do Brasil”, com participação dele) ao Engenheiro do Hawaii, Humberto Gessinger (“Terra de gigantes”), o rock carioca de Cazuza e George Israel (“Inocência do prazer”) e a dupla rara Arnaldo Antunes/Frejat em “Onde mora o amor”. 

Em 1990, sua gravação “Púrpura” entrou na trilha da novela da TV Globo, “Lua Cheia de Amor”, e neste mesmo ano, ela emplacou um de seus maiores sucessos, “O Poeta Está Vivo”, homenagem que escreveu com Frejat ao amigo comum, Cazuza. Após uma longa pausa, em que continuou em atividade compondo e sendo gravada por artistas como Leila Pinheiro, Daúde, Nico Rezende, Simone, Capital Inicial, Barão Vermelho, ela voltaria ao disco solo em “Beleza Roubada”, em 2004, já por seu selo Cafezinho Music. Engatou parcerias com Zélia Duncan (“Capuccino”), Moska (“Fino e Invisível”, “Bordados na Psicodelia”), Frejat (“No Topo do Mundo” e “Conferências Sobre o Nada”, texto do iconoclasta poeta americano Allen Ginsberg). Em “O Escritor”, um sample de “O Grande Mentecapto”, de Francis Hime, sobre a obra de Fernando Sabino. E em “Receita da Felicidade”, uma citação do sambalanço “Bolinha de Sabão”, de Orlandivo e Adilson Azevedo. 

Fora do alinhamento, o álbum “Música e Maresia”, em 2016, recuperava gravações inéditas realizadas em 1994. Entraram parcerias com George Israel (faixa título) e Frejat (“Antes de Acordar”, “Ao Som de um Tambor”, “Eternamente no Coração”, “Dia a Dia”, “Amor Perigoso Amor”). Essencialmente autoral, “Sob o Signo do Amor” tem apenas mais uma parceria de Dulce - com Zé Manoel, em “A Arte Não é uma Jovem Mulher”. A interpretação nebulosa da solista boia entre teclados: “num encontro perfeito com a luz natural/ o sol já se pôs no mar temporal/ será outro amor, mas nunca igual”. Enfumaçada pelo sax jazz/blues, desliza “Morcegos à Beira-mar”: “fisgados sem saber/ em Paris au bord de la Seine/ por artimanhas de um cupido à beira mar”

"Vagalumes Fugidios” tem uma atmosfera do new tango do argentino Astor Piazzola, balizada por cello e bandoneon, e uma letra onírica, entre sombria e profética: “vagalumes fugidios nas montanhas de Pasolini/ao vislumbrar o fim da nossa humanidade/ o fascismo da massas chegando ao poder/ o fim da inocência e do amor”. Cético, “O Poeta Assaltante” (“nada de novo debaixo do sol/ nada de novo, nada original”), numa levada insidiosa de timbres e texturas, é invadido por trechos em inglês do poema “Washington D.C.”, do artista plástico, arquiteto e escritor George Iso (autor do livro “Paris não é uma festa”), declamados por Alan Riding, jornalista britânico nascido no Brasil, correspondente por anos do The New York Times. Poeta aguda e nada conformista, Dulce fecha seu disco numa clave distópíca, sob a cadencia pop/rock de  “Tudo Vai Passar”: “Como nós e essa canção, tudo desaparecerá/ (...) séculos de civilização/ nada restará”. 

Comentários

Divulgue seu lançamento