Na Ponta do Disco

“Toda poderosa e cheia de luz” – Os 75 anos de Joyce Moreno e os 40 do álbum “Tardes Cariocas”

por Artur Araújo

sexta, 03 de fevereiro de 2023

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O nome de Joyce Moreno por si só já representa muito sobre o brilho e o protagonismo feminino nas páginas da história da música popular brasileira. Aos 19 anos, como compositora e intérprete, causou um enorme reboliço entre jornalistas, júri e a plateia, ao classificar e defender “Me Disseram” no II Festival Internacional da Canção (1967). Em uma época onde o feminismo pouco era pautado na música, muito menos em primeira pessoa, trechos como “Já me disseram que meu homem/Não me ama/Me contaram que tem fama/De fazer mulher chorar” fizeram com que muitos a taxassem como “vulgar e imoral”, desqualificando sua participação em um festival que deveria abrir portas para todo o seu talento como cantora, compositora e violonista - coisa até então rara em um país que só tinha como referências: Rosinha de Valença, Tuca, Wanda Sá e Nara Leão. 

Mas o tempo só provou o contrário à medida em que a força, a beleza e a grandiosidade de sua obra foi ganhando o Brasil e o mundo. Baseado nessa obra, hoje quero falar de um álbum que me cativou desde a primeira audição - sendo o mais indicado aos meus amigos para apreciação, e que por um acaso feliz está comemorando 40 anos em 2023.  

Lembro que em 2016, como músico e universitário morando na cidade histórica de Ouro Preto/MG, estava descobrindo alguns discos que certamente contribuíram bastante em minha formação musical. Os principais foram: Ivan Lins – Chama Acesa (1975), Luiz Gonzaga Jr. (1973), Marcos Valle – Vontade de Rever Você (1981), e claro o “Tardes Cariocas” (1983). Outros discos da Joyce já estavam fazendo minha cabeça há tempos, tais como: Passarinho Urbano (1976), Feminina(1980) e Água e Luz(1981) – esses foram fundamentais para que eu tivesse um primeiro contato com sua musicalidade, sem contar nas pesquisas em fichas técnicas que me fizeram reconhecer sua voz no coro em “Saudades dos Aviões da Panair” do disco “Minas” (1975) de Milton Nascimento; descobrir trabalhos como “Nelson Angelo e Joyce” (lançado poucos meses antes do antológico do Clube da Esquina), “Visions of Dawn” com Maurício Maestro e Naná Vasconcelos, além de sua riquíssima contribuição em grupos como A Tribo e Sagrada Família (Com Luiz Eça). 

“O Tardes” (como costumo chamar carinhosamente), tem uma história muito interessante. Após dois discos lançados pela EMI-Odeon, a cantora descobriu que a gravadora estava fazendo uso indevido das bases originais da gravação “Clareana” para uma coletânea de intérpretes femininas, na qual a faixa seria interpretada por Sonia Melo. Todo esse imbróglio com a gravadora, fez com que Joyce optasse por fazer um trabalho independente. Coisa que até então já estava sendo potencializada desde a gravação de  “Um passeio Musical”  de Paulinho e seu Conjunto, produzido por Pacífico Mascarenhas na década de 60, depois com o disco instrumental “Feito em Casa” (1977) de Antônio Adolfo no qual Joyce também participa em uma faixa, seguido pelo disco homônimo do Boca Livre (onde “Mistérios” integra o repertório), e o maravilhoso disco assinado pelo duo de compositores/arranjadores Alberto Rosenblit e Mário Adnet (lançado próximo do primeiro disco do Boca Livre). 

Joyce não fazia ideia do enorme desafio que seria fazer um disco sem apoio de uma gravadora. Na época, além das responsabilidades como mãe, também estava finalizando a construção de sua casa no Recreio dos Bandeirantes. 

Sendo assim, buscou oportunidades de realizar o projeto em outras gravadoras, mas em todas obteve resposta negativa. Portanto, pela lógica, essa falta de incentivo poderia fazer com que o trabalho não fosse concebido.  Mas para nossa felicidade não foi exatamente o que aconteceu. 

Contando de início com o apoio de dois músicos fundamentais na base de seu som: Tutty Moreno (baterista) e Fernando Leporace (baixo), a compositora foi estruturando o repertório do disco, e entendendo que em sua essência a colaboração de muitos companheiros de estrada seria fundamental para dar vida ao seu sétimo trabalho no mercado fonográfico. 

Dentre os músicos que participaram das gravações estavam: Mauro Senise, Rodrigo Campello, Egberto Gismonti, Mário Adnet, Alberto Rosenblit, dentre outros. 

Mário Adnet também entrou no time de parcerias com “Ela”, Ana Terra (já veterana parceira de Joyce) em “Luz do Chão”, na canção “Curioso” Joyce inaugura sua parceria com o mineiro Marku Ribas, e em “Suor”, com Alberto Rosenblit. Vale destacar também a participação de Ney Matogrosso em “Nacional Kid”, e Egberto Gismonti participando em “Nuvem” e “Baracumbara”. Como arranjador bateu uma bola com Mário Adnet na parceria do arranjo de “Ela”. Alberto Rosenblit, além de tocar piano, também fez regência e arranjou a faixa título “Tardes Cariocas”. 

O álbum ganhou destaque nos cadernos de cultura de diversos jornais, fez com que a cantora circulasse fazendo shows pelo país, e divulgando algumas canções no rádio. Mesmo com a dificuldade no que diz respeito à promoção do trabalho que até então havia vendido pouco, no ano seguinte recebeu o Prêmio Chiquinha Gonzaga na categoria “Melhores Lançamentos Fora do Circuito das Gravadoras”, o que tornou possível uma nova prensagem viabilizada pela distribuição da Polygram – abrindo portas para sua entrada no mercado japonês. 

Em 1997 o selo britânico Far Out relança o “Tardes Cariocas” em vinil e CD, com um novo detalhe: a exclusão de “Diga aí, companheiro” – faixa que abre o lado A do disco. Uma marchinha com ares carnavalescos de fanfarra, pensada inicialmente para ser gravada pelas Frenéticas, e que trata do tema da bissexualidade masculina, tendo como figura de inspiração da época o jornalista Fernando Gabeira. Segundo Joyce o motivo para tal exclusão da faixa foi o seu destoamento com as demais canções, sendo incluída no repertório por ter sido gravada na mesma época e reaproveitada para o disco. 

Dentre as minhas faixas prediletas, destaco a existencialista “Duas ou Três Coisas” - gravada posteriormente em dueto com Ney Matogrosso no álbum “Revendo Amigos” (1994), “Tardes Cariocas” – declaração de amor à sua cidade natal, com o belíssimo contracanto de flautas arranjado por Alberto Rosenblit, “Ela” – tendo sido gravada anteriormente sem letra, no disco de Mário Adnet e Alberto; “Luz do Chão” – com menção na letra às questões ambientais e a parceria no amor e na música com Tutty Moreno; “Suor’’ – mostrando a importância do trabalho para edificação do ser humano como indivíduo responsável por tudo ao seu redor; e a mântrica “Baracumbara” – encerrando o disco com leveza e boas energias. 

Eu poderia ficar horas e horas falando sobre esse disco, e ainda assim não encontraria todas as palavras necessárias para defini-lo. Mas o considero como um trabalho completo, digno de muita atenção por sua riqueza poética, harmônica e melódica. Sem contar na maneira como nos apresenta uma fase em que a bagagem de vida de Joyce se estende com muita potência à sua musicalidade (cada vez mais madura e arrojada), refletindo na total autonomia exercida em tudo o que foi produzido no disco. Motivos não faltam para celebrar com muito orgulho os 40 anos desse trabalho, e os 75 anos que fazem sua mente criativa continuar presente em nossos ouvidos e corações. 




Artur Araújo é cantor, compositor, instrumentista, pesquisador e produtor cultural. Formado em canto pela Bituca Universidade de Música Popular, tem parceria com Simone Guimarães e Murilo Antunes, dividiu palco com Toninho Horta, Nelson Angelo, Marilton Borges, Robertinho Silva, Telo Borges, Túlio Mourão, dentre outros. Em 2022 lançou seu álbum de estreia "Morada dos Ventos" - Contemplado pela Lei Aldir Blanc no estado de Minas Gerais. O álbum foi aclamado pela crítica especializada em música, tendo sido resenhado por Mauro Ferreira em sua coluna no G1 (Pop e Arte), pelo jornalista japonês Haruki Tamboo em sua coluna no site Música Terra e pelo músico Aquiles Reis (integrante do MPB4) em sua coluna no jornal do Brasil.

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