Colunista Convidado

“Turma da Tijuca”: bairro que foi reduto da Jovem Guarda é berço de nova geração de músicos

Por Carolina Torres

quarta, 01 de fevereiro de 2023

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Esta reportagem é acompanhada de uma playlist, cuja prévia se encontra ao final do texto. Caso deseje fazer a leitura com uma trilha sonora, clique aqui.

“Turma da Tijuca”. À esquerda: Lucinha Lins e Ivan Lins, Erasmo Carlos, Gonzaguinha, Roberto Carlos, Tim Maia, Letrux e Humberto Effe. À direita: Aquino e a Orquestra Invisível e Kropf. / Arte autoral com fotos de arquivo e divulgação.

“Haddock Lobo, esquina com Matoso, foi lá que toda a confusão começou”, canta Tim Maia na faixa que escreveu em homenagem ao seu bairro de origem. Morador da Tijuca, Zona Norte do Rio, Tim passou sua infância jogando pelada com os colegas de rua, entregando marmitas para ajudar seus pais e fazendo música. Por causa de seu trabalho, passou a ser chamado de “Tião Marmiteiro”, apelido que odiava, por um vizinho com quem costumava implicar: Erasmo Carlos. Como vingança, Tim vez ou outra entregava marmitas sem carne para a família do colega.

Com o passar dos anos, a rivalidade virou amizade, impulsionada pelo gosto comum da dupla por futebol e música. Foi aí que a “confusão” sobre a qual Tim canta realmente começou. Os tijucanos passaram a tocar juntos com frequência no Bar do Divino, na Rua do Matoso e lá fizeram várias outras amizades por causa da música, dentre elas Jorge Ben Jor, do Rio Comprido, e Roberto Carlos, capixaba que se mudou para o bairro do Lins. Lado a lado, na Zona Norte carioca, esses grandes nomes da música popular brasileira deram os primeiros passos em suas carreiras artísticas.

Lançada em 1982 no álbum “Nuvens”, a faixa “Haddock Lobo, esquina com Matoso” rememora os encontros que marcaram a vida desses jovens músicos, que viriam a se tornar grandes nomes do movimento artístico da Jovem Guarda. Assim como Tim, Erasmo também compôs homenagens às vivências no bairro da Zona Norte. Lançou, em 1972, a música “Largo da 2ª Feira”, em referência à grande praça perto da qual viveu, e, em 1984, “Turma da Tijuca”, sobre os amigos que fez por lá.

Em novembro de 2022, ele teve seu nome eternizado no bairro. Dois dias depois da morte do cantor, aos 81 anos, o prefeito da cidade do Rio de Janeiro Eduardo Paes decidiu rebatizar a famosa praça na qual viveu o músico, que agora chama-se Largo da Segunda-Feira Erasmo Carlos.

Foi pelas ruas tijucanas que essas grandes figuras começaram a se desenvolver artisticamente, há cerca de 65 anos. Na época, o bairro era outro. No coração da Tijuca, a Praça Saens Pena, onde hoje estão dezenas de lojas de vestuário, agências bancárias, academias e farmácias, vigorava um robusto polo de cinemas de rua. Ali funcionavam, em prédios de arquitetura chamativa e moderna, os cinemas Carioca, Eskie, Metro Tijuca, América e, o Cine Teatro Olinda, um dos maiores da América Latina, que comportava cerca de 3,5 mil pessoas.

Durante essas décadas, o bairro foi reduto para diversos músicos. Na rua Haddock Lobo, esquina com Matoso, Tim, Erasmo, Jorge Ben e Roberto bebiam da fonte de Elvis Presley e Little Richard e experimentavam no rock n’ roll, em bandas como The Sputniks (Tim Maia, Roberto Carlos, Arlênio Lívio, Édson Trindade e Wellington Oliveira) e The Snakes (Arlênio Lívio, Erasmo Carlos, Edson Trindade e José Roberto). Enquanto isso, na Praça Varnhagen, o Movimento Artístico Universitário (MAU) lançava ao mundo talentos como Gonzaguinha, Ivan Lins, Aldir Blanc, Lucinha Lins e Márcio Proença.

Tim Maia (à esquerda) e Roberto Carlos (à direita) com a banda The Sputniks. | Foto: Reprodução.

Durante as décadas de 60 e 70, o médico psiquiatra e instrumentista Aluízio Porto Carreiro de Miranda e sua esposa Maria Ruth promoveram saraus em sua residência na Rua Jaceguai. Nos encontros, detalhados no livro “Jaceguai, 27”, de Leila Affonso e Jorge Fernando Santos, jovens músicos, muitos cursando a universidade, protagonizaram encontros criativos que marcaram a história da MPB.

Hoje, a Tijuca costuma ser lembrada pelos cariocas como um centro comercial. Onde antes havia grandes casas como a da Jaceguai, hoje se encontram altos prédios, entre comerciais e residenciais, e, para assistir a um filme na telona, é preciso ir a um shopping center.

É meio a essa selva de pedras repleta de prédios antigos com novas funções, cercada por grandes morros verdes, presentes também desde os tempos passados, que uma nova geração de músicos cresceu e tem buscado inspiração para dar seus primeiros passos na carreira.


Aquino e a Orquestra Invisível

Moradores do bairro desde que se entendem por gente, os xarás João Soto e João Vazquez têm gosto pela música desde a infância. Soto nasceu em uma família imersa em música. Sua mãe foi cantora na juventude, enquanto que seu pai trabalha como produtor musical e é dono de um estúdio de gravação. Já Vazquez, apelidado de Vavá, começou a gostar de música por meio do videogame Guitar Hero, mas aprofundou seu interesse depois da morte do “Rei do Pop” em 2009. “Quando o Michael Jackson morreu, eu comecei a expandir o gosto pela música. Eu descobri quem ele era, fiquei obcecado, e tive uma festa de oito anos temática em sua homenagem”, conta.

Estudantes do mesmo colégio, o Marista São José, um dos mais antigos e tradicionais do bairro, os dois, que eram de anos diferentes, se aproximaram por intermédio da música. João fazia parte da banda do colégio, que, com ares de big band de filme americano, com instrumentos de sopro, percussão, cordas e vocais, se apresentava em eventos da comunidade escolar como as olimpíadas, festas juninas, celebrações de final de ano, e, eventualmente, também nos recreios.

Soto, nessa época, vivia a adolescência típica dos amantes de música de classe média: interpretava músicas de seus artistas favoritos com amigos. Desde essa época, quando tocava baixo em “bandas de Arctic Monkeys”, como ele chama os projetos nos quais fez cover da banda britânica de indie rock, João já tinha o sonho de tocar profissionalmente, mas ainda não tinha encontrado companheiros com o mesmo interesse. “A galera quer viver o sonho, mas nem sempre está disposta a encarar a realidade de ter uma banda”, diz ele.

Até que uma amiga em comum apresentou Vavá ao seu “ídolo da escola”, João, e os dois começaram a tocar juntos. A amizade se intensificou quando eles já estavam no ensino médio, estudando em outro lugar. Realizando seu sonho de muitos anos de tocar em banda, Vavá começou a construir uma com João. Eles passaram a compor juntos, usando como inspiração suas vivências adolescentes, gravaram demos, e, pouco a pouco, foram tornando o sonho de uma banda profissional cada vez mais palpável. Algum tempo depois, em meados de 2019, com a chegada do insulano Leandro Bessa ao grupo, a banda Aquino e a Orquestra Invisível surgiu.

Morador da Ilha do Governador que vez ou outra dá um rolé pela Tijuca para visitar o pai, Leandro Bessa, assim como João, passou a adolescência tocando covers em bandas de rock. Quando conheceu os tijucanos, ele estudava Produção Fonográfica na Estácio e pretendia usar os conhecimentos adquiridos no curso para profissionalizar a produção da banda na qual tocava na época. Só que, depois de conhecer os tijucanos por meio de uma amiga em comum, ele se interessou pela proposta musical diferente de João e Vavá e decidiu fazer um som com eles. “A gente se conheceu e foi para um estúdio tocar algumas músicas. E a gente era zero amigo, éramos totalmente desconhecidos”, relembra.

A química foi boa e, em alguns meses desse primeiro contato, a Aquino estava formada, com Leandro na bateria, Vavá na guitarra, João no baixo e teclado, e os três nos vocais.

Em abril de 2021, depois de muito trabalho, eles lançaram “Os Prédios Cinzas e Brancos da Av. Maracanã”, seu primeiro álbum. Com canções compostas por João e Vavá na adolescência, somadas a novas letras inspiradas pelo período de isolamento de 2020, o disco, apesar de tratar de temas universais, é também uma espécie de homenagem à Tijuca, e ao lado mais urbano da vida carioca.

“A gente sempre foi muito tijucano, nunca fomos de sair muito da Tijuca para dar rolé, nossos rolés eram festas no meu apartamento, que é o 302 [título de uma das faixas do álbum], ou a Praça Varnhagen [polo boêmio do bairro]. Então é um disco que fala sobre a nossa vivência naquela época, entre 2017 e 2019, em que estávamos dando muito rolé aqui, passávamos muito pela Avenida Maracanã. E tinha também essa melancolia, que a pandemia expandiu”, diz João.

João Soto (à esquerda), Leandro Bessa (ao centro) e João Vazquez (à direita) na capa do álbum “Os Prédios Cinzas e Brancos da Av. Maracanã”. Foto: Divulgação.

Inspirados por artistas que passeiam pelo pop alternativo e o rock indie, como o cantor Cícero e a banda O Terno, os meninos da Aquino criaram um álbum que mescla esses estilos musicais a sons experimentais, e a outros ritmos brasileiros, sempre dialogando tanto com a tradição quanto com as novas vozes da MPB.

Faixas como “Florestas de Apartamento”, “Ruas” e “Os Prédios Cinzas e Brancos da Av. Maracanã” trazem a melancolia e a solidão compartilhada dos grandes centros urbanos, intensificadas pelo período pandêmico. Já canções como “302” e “Pitaya” tratam do frescor e da intensidade da juventude, que contrastam com a dureza do concreto que percorre a cidade. E como não poderia deixar de ser, o disco também traz muito da natureza que coexiste com a urbanidade carioca, especialmente no bairro da Zona Norte, que é cercado de morros verdes e está ao lado da Floresta da Tijuca.

Quase um ano depois do lançamento do disco, a Aquino finalmente pôde fazer seu primeiro show ao vivo. Em fevereiro de 2022, a banda apresentou seu trabalho no palco do Centro da Música Carioca Artur da Távola, um equipamento da Secretaria Municipal de Cultura que funciona na Rua Conde de Bonfim, uma das principais da Tijuca.

Dali em diante, o grupo não parou mais, 2022 foi um ano repleto de shows e trabalhos para a Aquino. Como banda de abertura, os meninos tocaram em casas de renome como o Circo Voador, no Rio de Janeiro, e o Teatro Cine Joia, em São Paulo. Paralelamente, trabalharam no EP “Aquino e a Orquestra Invisível”, lançado em setembro pelo sub-selo Bolo de Rolo, projeto voltado a artistas em início de carreira idealizado pelo selo paulistano Rockambole.

Nas cinco novas faixas, o grupo mostra um outro lado, mais solar e dançante. Acompanhando o amadurecimento de seus integrantes, as músicas da banda tratam de uma expansão de horizontes.

“No primeiro álbum são basicamente doze músicas falando de um assunto só: a nossa perspectiva adolescente do bairro. Era um momento tão dependente que a gente não tinha o que falar, verdadeiramente, que não fosse sobre o nosso bairro. O EP trata mais do Rio de Janeiro como um todo, dessa vida solar, e fala de outros pontos da cidade, como o Circo Voador, a praia”, explica Vavá.

No trabalho com o selo Rockambole, a banda começou a frequentar mais a cena musical de São Paulo. A Aquino já fez shows de abertura para bandas da casa, como o grupo O Grilo, e tem participado de festivais organizados pela Rockambole. Ao conviver com a “galera de São Paulo”, como eles os chamam, os meninos contam que sentiram a necessidade de reafirmar sua identidade.

“O EP é muito carioca, porque entendemos que tínhamos essa necessidade de sermos cariocas, também como moeda de troca. Lá em São Paulo nós somos conhecidos como ‘os meninos do Rio, a galera da praia’. E a gente vai na praia, a gente curte a cidade, mas não é algo que está tão presente na nossa rotina, não somos os cariocas típicos que pessoas de outros estados têm em seu imaginário. Então, no EP, nós criamos um personagem de carioca e vestimos essa camisa”, conta João.

Para além da expansão da sua base de fãs pelo país, a banda também vê a presença na cena paulistana como uma oportunidade de romper com barreiras impostas pela própria cena carioca. Leandro acredita que a maior parte do público que gosta do estilo de música que a Aquino produz está concentrada na Zona Sul, e, consequentemente, muitos dos produtores de casas de show e festivais locais privilegiam os gostos desse público, também mais endinheirado, na hora de escolher suas atrações.

“Às vezes, a gente passa por um momento de provação para outros músicos e para outras galeras, então para termos o respeito ou sermos ouvidos por uma determinada galera, temos que ir para outros lugares, no caso São Paulo, que é para onde essa galera também vai, também olha”, explica.

João complementa, dizendo que, apesar de parecer paradoxal, a presença da Aquino em cenas movimentadas como a de São Paulo, de onde saíram nomes da música independente de relevância nacional como a banda Terno Rei e a cantora Céu, é uma tentativa de “conquistar o público carioca de fora”.

Os meninos têm a ambição de ganhar mais espaço na cena local, mas esclarecem que não têm uma simples vontade de agradar ao público que mora mais perto da praia por puro capricho. Para eles, a lógica que rege a “bolha cultural” da Zona Sul carioca e da cidade de São Paulo lhes soa um tanto elitista, mas entendem a quebra desse tipo de barreira como uma etapa necessária ao crescimento profissional, comum a muitos artistas.

“A Letrux é um bom exemplo disso, porque ela é uma tijucana que levou dez anos de muito trabalho até conseguir emplacar algo “para depois do túnel”. Ela é uma referência muito grande para nós nesse sentido, da resiliência”, diz João.

Nascida e criada na Tijuca, a cantora Letícia Novaes se apresentou pela primeira vez em 2005, com a Letícios, banda de rock que montou com amigos do bairro aos 22 anos. Mas foi apenas em 2017, doze anos depois, que conquistou relevância nacional na cena alternativa, com seu álbum solo de estreia, dessa vez sob o nome Letrux, o “Letrux em Noite de Climão”. Hoje, já com seu segundo álbum lançado, ela costuma lotar shows e está presente nas programações de festivais por todo o país.

Entre a Letícios e seu projeto solo, Letícia ainda cantou por vários anos ao lado do guitarrista Lucas Vasconcellos na banda indie Letuce. Atualmente reconhecida em todo o cenário da música independente brasileira e sendo um sucesso de crítica, por muitos anos Letrux esteve esquecida “do outro lado da ponte” do Rio de Janeiro. Para João, isso tem um motivo, “a Tijuca é um lugar que está culturalmente esquecido”, afirma.


Como preservar a memória musical?

Por mais que o bairro tenha sido palco para encontros de artistas de reconhecimento nacional que vão de Roberto Carlos a Ivan Lins, essa memória é pouco presente no cotidiano da Tijuca. No ano passado, Erasmo Carlos foi homenageado com a renomeação do Largo da Segunda-Feira e, em 2015, a Praça Afonso Pena ganhou uma estátua de Tim Maia. Mas essas homenagens aos talentos tijucanos de outrora são o suficiente para manter a memória cultural do bairro viva?

Presidente do Instituto Memória Musical Brasileira (IMMuB), João Carino afirma que a música é o maior patrimônio do Brasil e traça um breve panorama histórico. Ele explica que, no século XX, a cidade do Rio de Janeiro era o polo cultural do país e, por isso, muitos dos músicos que ficaram conhecidos nacionalmente eram daqui, ou vieram para cá. “A junção das rádios, que estavam concentradas na cidade, com a beleza, o ar cosmopolita e o fato de funcionar como uma vitrine para o país e para o mundo, atraía compositores e artistas do Brasil inteiro para o Rio”, diz.

De acordo com ele, naquela época, muito mais do que hoje em dia, a geografia era um fator fundamental para o desenvolvimento musical. “A música, especialmente antigamente, tinha redutos. Na Tijuca, havia a casa da Jaceguai, em Copacabana, a casa da Nara Leão. Havia sempre um lugar agregador, podia ser um botequim ou a esquina de uma rua, onde as pessoas se encontravam para fazer música. Isso, hoje, ainda existe, temos redutos como o Beco do Rato, mas não é como antes. Hoje, as pessoas estão muito em casa, podem fazer uma música juntas sem nem precisar se ver. A tecnologia, o medo de sair de casa e a falta de dinheiro fazem com que a arte do encontro fique um pouco comprometida, se comparada com o que era antigamente”, opina.

Encontro do MAU na casa da Jaceguai. Foto: Reprodução.

Para Carino, toda homenagem é válida, porém, para resistir ao tempo, é necessário mais do que estátuas e nomes de ruas. Ele lembra que, no século passado, a duração da carreira e da fama dos artistas costumava ser bem mais curta do que hoje. Como exemplo, cita Chico Buarque, que, aos 80 anos, está lotando casas de shows em turnê, e o compara com Mário Reis, um dos cantores mais populares da era do rádio, conhecido como “bacharel do samba”, e que morreu aos 74 anos, já há três décadas afastado do meio artístico.

Mário Reis cresceu na rua Afonso Pena. Onde antes era a grande casa de sua família, fica hoje um prédio que nem seu nome leva. Se a rua tivesse sido renomeada em sua homenagem, será que seu legado estaria mais vivo na memória musical carioca? Carino acredita que, devido à rapidez com que o mundo muda e à quantidade de informações a que somos submetidos diariamente, essa homenagem, por si só, não seria suficiente.

“Talvez a melhor solução seja atualizar a memória, através de novos artistas cantando antigos compositores, antigos artistas, com uma roupagem diferente, que respeite a música original, para que aquilo seja melhor compreendido por outros públicos”, diz.

A Aquino e a Orquestra Invisível participou de uma iniciativa desse tipo em 2022. Selecionado pelo edital Retomada Cultural 2, da Secretaria Estadual de Cultura do Rio de Janeiro, o grupo apresentou o espetáculo “Humberto Effe & Aquino e a Orquestra Invisível visitam Sérgio Sampaio”.

Humberto Effe, cantor e compositor tijucano e um dos fundadores da antiga banda de rock carioca Picassos Falsos, foi um dos ídolos da mãe de João Soto, integrante da Aquino, na adolescência. Durante a época das lives no isolamento, Humberto e a banda se conheceram depois de tocarem juntos em um festival online. Depois, decidiram se inscrever juntos para o edital, projeto do qual o mais velho já tinha muita vontade de participar, e foram selecionados. Assim, em três shows, os quatro apresentaram uma interpretação do repertório de Sérgio Sampaio, cantor e compositor que assina canções clássicas da MPB como “Bloco na Rua” e “Cada lugar na sua coisa”.

Para a Aquino, a experiência representou crescimento profissional. Eles contam que, a partir desses shows, nos quais puderam contar com uma estrutura de ponta que não lhes é usual, aprenderam a melhorar a qualidade de seu show e a desenvolver sua habilidade performática. Consideram, também, que foi uma oportunidade ímpar de amadurecer a imagem da banda.

“Foi uma experiência super legal poder, além de apresentar para o público mais jovem o trabalho do Sérgio Sampaio, que sempre foi uma grande referência para nós, nos colocarmos dentro da cena como artistas que pensam música brasileira”, diz João.

Além disso, a verba do edital foi fundamental para que eles tivessem tranquilidade financeira para investir em outros projetos. O dinheiro que ganharam virou o primeiro caixa da banda e ajudou a bancar, por exemplo, as viagens para os shows que realizaram ao longo do ano e alguns dos instrumentos que compraram.


Fazer dinheiro com música

Apesar de estarem trilhando um caminho frutífero para uma banda tão jovem, os meninos contam que ainda é muito difícil ganhar dinheiro com a música. Geralmente, eles costumam sair de apresentações no zero, e algumas vezes, acabam tendo prejuízo. Outras raras vezes, conseguem, por meio da venda de produtos da banda, sair de um show com um lucro de aproximadamente 100 reais, o que, nesse momento, encaram como um ótimo resultado. “É menos romântico do que parece”, resume João.

Jovens na casa dos 20 anos, os membros da Aquino se dedicam, paralelamente à banda, a outros afazeres. João é graduando de Artes Visuais na Universidade do Estado do Rio de Janeiro e trabalha como tatuador. Vavá chegou a cursar Geografia, mas, no momento, está fazendo vestibular de novo para tentar mudar de curso. Formado em Produção Fonográfica pela Estácio, Leandro trabalha com produção musical e é técnico de gravação em um estúdio.

Eles encaram essas atividades como um plano B, uma forma de “bancar suas loucuras com a Aquino”. Cientes das dificuldades que músicos independentes passam para conseguir financiamento, os meninos têm a intenção de continuar participando de editais. Para eles, ser selecionado para novos projetos significa a oportunidade de realizar trabalhos diferentes que agregam valor às suas carreiras e, também, uma maneira de manter o caixa da banda sempre ativo.

Nos últimos quatro anos, o setor da cultura sofreu um enorme desgaste. À nível federal, com a dissolução do Ministério da Cultura, os editais de fomento se tornaram cada vez mais escassos. No Rio de Janeiro, entre as gestões de Witzel e Castro (2019–2022) no governo e de Marcelo Crivella (2017–2020) na prefeitura, o setor cultural sofreu especial desmonte, com a tentativa inclusive de acabar com o carnaval de rua, manifestação cultural tradicional na capital, responsável por movimentar cerca de R$ 4 bilhões por ano, segundo o relatório Carnaval de Dados.

Produtor musical e dono do estúdio de gravação HR Estúdio, Flávio Pascarillo acredita que falta incentivo à área musical e tem a esperança de que, com a volta do Ministério da Cultura, o país veja mais investimentos no setor.

Trabalhando com música há mais de 20 anos no bairro da Tijuca, ele avalia que a cena carioca está em constante renovação, mas que ainda carece de apoio e valorização, tanto do governo como do público, para alcançar pleno potencial. A pluralidade de clientes do HR mostra que há muita gente querendo fazer música no Estado do Rio de Janeiro. Alguns, inclusive, vêm de pontos bem distantes para ensaiar ou gravar na Zona Norte da capital. “Temos clientes semanais que vêm de Niterói, e até de Nova Iguaçu”, conta.

Durante a pandemia, o estúdio de Flávio, assim como muitos outros estabelecimentos que trabalham com cultura, passou por momentos muito complicados financeiramente, mas agora o movimento no HR está em aumento constante. Têm frequentado as salas de ensaio e gravação artistas dos mais diversos estilos musicais, tanto os que estavam afastados dos estúdios para se proteger da covid-19, como também uma grande leva que começou a fazer música durante os anos pandêmicos.


Kropf

Na Praça Varnhagen, polo gastronômico da Tijuca, em frente a um parquinho infantil, um jovem loiro de média estatura, com os cabelos presos em um coque, sem camisa, vestindo calça preta e tênis, já suado e com aparência de um pouco cansado, se prepara para realizar uma manobra de skate. Eis que um homem de meia idade interrompe o passeio com seu cachorro para dar dicas ao skatista. Ele escuta, agradece, sobe no skate e executa a manobra, que já estava tentando acertar há alguns minutos, com perfeição. Com um sorriso no rosto, cumprimenta o conselheiro com um soquinho. “Aí, só porque tu falou!”, comemorando.

Esse é o vídeo mais recente de Guilherme Kropf a viralizar no Tik Tok. Em seu perfil com 18,7 mil seguidores, o jovem, de 21 anos, compartilha, sob o nome Kropf, seus momentos de lazer. Vídeos jogando altinha com amigos, fazendo manobras de skate e jogando basquete tomam conta de seu feed, muitos deles gravados na Grande Tijuca, bairro em que reside desde a infância.

Um outro interesse que compartilha nas redes é o seu amor pela música. Quando criança, Guilherme tinha o hábito de inventar canções no chuveiro e conta que sempre gostou de ter uma platéia e de fazer barulho. Ele chegou a fazer aulas de violão e de piano, mas o que gostava mesmo era de escrever rimas e fazer freestyle. Hoje, sob o nome artístico Kropf, Guilherme começa a dar os primeiros passos no mundo do rap.

Em agosto de 2021, lançou sua primeira música, “Enquanto Eu Acendo”, uma parceria com o rapper YngCC, seu colega de coletivo musical, o Toca do Gambá. Olhando para trás, Kropf se sente orgulhoso dessa primeira faixa, mas avalia que seu trabalho já evoluiu bastante desde então. “Tenho até vontade de fazer uma remasterização da música”, diz.

Foi no ano seguinte que o rapper começou a desenvolver mais a fundo seu trabalho. Em 2022, Kropf lançou os singles “Atitudes”, de melodia viciante que é entoada a plenos pulmões pelo público em suas apresentações ao vivo, “24K”, uma segunda parceria com o YngCC, e “Banheira de Espuma”.

Seu primeiro show aconteceu em julho, quando participou do evento Nós na Rua, manifestação cultural itinerante voltada para o rap e o trap, no Quintal do Bispo, próximo à Marina da Glória.

“O Nós na Rua foi o meu primeiro show e, se não foi o melhor, foi um deles, porque a energia foi absurdamente boa. Eu estava muito nervoso, quase passei mal, mas cheguei lá, me apresentei, e todo mundo me elogiou. Isso aumentou muito a minha confiança para me apresentar. Me ajudou bastante, e foi uma grande oportunidade. Não recebi, nem pensei em receber também, nem liguei para isso, só queria cantar minha música”, relembra.

Depois dessa primeira experiência, vieram várias outras e, algumas, pertinho de casa. Kropf se apresentou nas duas primeiras edições do evento Se Liga na Praça, iniciativa que promove encontros culturais ao ar livre na cidade do Rio, realizadas nas praças tijucanas Varnhagen e Xavier de Brito. Nos vídeos das apresentações, dezenas de jovens cantam, dançam e pulam ao som de Kropf, que se entrega completamente às performances.

Entusiasta da “arte dos encontros”, como classifica o presidente do IMMuB João Carino, Kropf exalta a importância de ocupar a rua para fazer música. “Quanto mais evento de rap, mais o estilo vai se proliferar, como um vírus mesmo. Quanto mais tiver, mais a galera vai ver a arte de uma maneira diferente, vai se interessar. Têm tantas coisas interessantes que não têm a divulgação necessária, que não aparecem tanto na mídia ou nas redes sociais. Penso que os eventos são uma forma mais direta de fazer a mensagem chegar”, diz.

Kropf canta no evento Se Liga na Praça. Foto: Gabriel Lopes (Gaz Lab Prod).

Ele conta que sempre ocupou muito a rua, seja para jogar altinha, andar de skate, fazer rima, ou simplesmente para estar com os amigos. Assim, conheceu muitas pessoas com interesses similares aos seus no próprio bairro. “Na Tijuca tem bastante gente fazendo música, e também tem um fluxo bem alto de pessoas, que às vezes nem nem são daqui, mas frequentam o bairro, porque ensaiam em um estúdio por aqui, ou algo assim”, conta.

Trabalhando como vendedor em uma tabacaria da Varnhagen, Kropf tem investido cada vez mais na música. No final do ano passado, ele gravou um clipe para seu próximo single e está, aos poucos, montando um estúdio caseiro profissional. Ele avalia que vários rappers da Zona Norte tem muito potencial de ascensão, mas reconhece que não é um caminho fácil. “Falta oportunidade para muita gente, principalmente para a galera que não tem dinheiro para investir. É um ou outro que consegue, é um meio muito movido por contatos, tem muita panela”, diz.

Por isso, apesar de ter o sonho de viver das suas músicas, ele não descarta a importância de ter uma segunda opção. “Querendo ou não, tenho que ter um plano B, mas acho que eu nunca vou deixar de fazer música. De repente, posso trabalhar no meio, mesmo que não necessariamente como artista”, explica.

Hoje, além de se dividir entre o trabalho musical e o de vendedor, Kropf está fazendo um curso de Produção Musical na Escola Villa Lobos. Seu próximo single, “Fade Away”, deve ser lançado nos próximos meses, junto de seu primeiro videoclipe. “Estou maluco querendo soltar esse trabalho logo para vocês!”, disse ele na legenda de uma das fotos que postou como spoiler do clipe nas redes sociais.

Sobre o futuro, Kropf ainda não sabe, mas, por ora, sua meta é retribuir o amor daqueles que sempre o apoiaram. “Meu maior objetivo agora é fazer dinheiro, dar uma viagem para a minha mãe e a moto dos sonhos para o meu pai”, conta.

Assim como Kropf, João, Vavá e Leandro compartilham seus sonhos e metas para a Aquino e a Orquestra Invisível. Pensando sobre onde gostariam de se apresentar em um futuro próximo, eles citam grandes eventos nacionais. “Tocar no Circo Voador foi muito simbólico para nós, é um sonho já realizado. Mas, pensando em uma perspectiva mais abrangente, eu diria que tocar em um dos palcos principais do festival Rock the Mountain seria uma grande conquista”, diz Leandro.

João vai além. “Acho que ele meio a ‘Disney dos festivais’, mas seria muito legal se a gente tocasse no Rock in Rio, no Palco Supernova. Os nossos amigos de Selo, O Grilo, já tocaram lá, então acho que é um sonho possível”, conta.

Trazendo uma outra perspectiva, Vavá finaliza a lista com um cenário que também agrada muito aos amigos: “Tocar no Circo como atração principal seria a cereja do bolo”.

Ouça abaixo todos artistas citados nesta reportagem, em ordem de menção.




Carolina Torres é Jornalista em formação pela UFRJ apaixonada por arte, literatura, cultura pop e música.

Essa reportagem é resultado do trabalho final da disciplina de Reportagem II do curso de Jornalismo da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).


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