Sobre a Canção

Um Anti-repente de Djavan

segunda, 22 de janeiro de 2024

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Na segunda metade da década de 1950, dois fenômenos influenciaram decisivamente a difusão da poesia de repente no Brasil: o êxodo rural, que levou boa parte da população rural do Nordeste para as capitais e para a Região Sul, em especial o Rio de Janeiro; e a difusão do rádio, este já muito popular, mas agora progressivamente acessível aos repentistas. Estes então começam a trocar as apresentações públicas passando o chapéu por cachês fixos em programas radiofônicos de maior alcance — até devido à chegada da eletricidade a regiões mais afastadas. 

Quem conta isso é o pesquisador Sandino Patriota no livro em que biografou seu avô, o cantador Otacílio Batista. E Sandino conta também que, tendo a atenção chamada para a crescente popularidade destes artistas, o Jornal do Brasil em 1959 promoveu um encontro de cantadores na capital federal, uma disputa de duplas de improvisadores com um júri ilustre de escritores e poetas: Manuel Bandeira, Orígenes Lessa, Eneida, Cavalcanti Proença. Os competidores concorreram a um prêmio de 20 mil cruzeiros e a disputa aconteceu no Teatro de Arena da Faculdade Nacional de Arquitetura (hoje da UFRJ), na Praia Vermelha. Os vencedores foram a dupla de Otacílio e seu irmão Dimas Batista com Zé Gonçalves e Cícero Batista (que não era parente dos vencedores) em segundo lugar. Nos dias seguintes, evidentemente, o Jornal do Brasil, que já havia anunciado o evento com pompa, anunciou também os vencedores em sua edição. E publicou também um poema de Manuel Bandeira, feito especialmente para o jornal, chamado “Saudação aos violeiros”:

Anteontem, minha gente,
Fui juiz numa função
De violeiros do Nordeste
Cantando em competição
Vi cantar Dimas Batista
E Otacílio, seu irmão
Ouvi um tal de Ferreira,
Ouvi um tal de João. (...)

O poema completo pode ser lido aqui. Os verso de Bandeira não saíram em livro antes de 1965, quando o volume com suas obras completas foi publicado, chamado “Estrela da Vida Inteira” — agora com o título “Cantadores do Nordeste”. Nele, além de todos os livros do poeta, estão também os poemas de circunstância criados aqui e ali e não incluídos em livro. E provavelmente foi nesta poesia reunida que Djavan conheceu o poema de Bandeira e o tomou como ponto de partida para sua canção “Violeiros”.

Violeiros” é a quinta faixa do álbum “Coisa de acender”, de 1992. Desde então, a co-autoria de Manuel Bandeira é citada eventualmente, mas nem sempre. Fato é que dos 26 versos da canção, os primeiros 11 são de autoria de Bandeira e aludem à competição que realmente aconteceu, inclusive mencionando os vencedores e mais alguns nomes. Porém, a partir daí, Djavan toma o leme e leva a canção em um outro rumo, começando pela nova direção dada aos versos de Bandeira. Este escreveu:

Um, a quem faltava um braço
Tocava cuma só mão
Mas, como ele mesmo disse,
Cantando com perfeição,
Para cantar afinado,
Para cantar com paixão,
A força não está no braço:
Ela está no coração.

Djavan toma a frase pelo meio e a completa de outro modo:

Um, a quem faltava um braço,
Tocava com uma só mão.
Mas, como ele mesmo disse,
Com veia de emoção:
- Eu canto a desesperança,
Vou na alma e dou um nó.
Quem me ouvir vai ter lembrança
De Tomás de um braço só.

Deste ponto em diante, Djavan continua a narrativa, e o resultado é não apenas surpreendentemente divergente da louvação de Bandeira, como também do próprio espírito de um repente, por vários motivos, mas principalmente no que move seu canto. Um desafio de repentistas tem uma característica festiva: feito originalmente nas praças, precisa chamar a atenção do público. Por isso, seu canto é sempre feito na região aguda, segundo certas fórmulas melódicas que variam de cantador para cantador, tendo alguns deles marcas registradas facilmente reconhecíveis - mas a melodia não é o que realmente importa, sendo apenas um veículo para as rimas de improviso, tanto que a própria viola de acompanhamento em geral dá apenas acordes de marcação, sem desenvolvimento rítmico. Além disso, a construção dos improvisos, especialmente nos desafios, é em geral irreverente e tem o foco em cada um dos disputantes se vangloriar e enaltecer, enquanto faz críticas ao adversário.

Mas em “Violeiros”, tudo é invertido: Djavan explora sua região mais grave - coisa que gostou muito de fazer, conforme afirmou em entrevistas. Sua letra, ao dar continuidade ao poema de Bandeira, passa a criar diversos personagens não constantes na disputa real de 1959, apresentando seus dramas pessoais, mas dando poucos detalhes sobre seus cantos - ao contrário, menciona alguns que sequer chegaram a se apresentar. Se o Tomás sem um braço da versão de Bandeira fala de cantar com paixão e força, o de Djavan canta a desesperança. E ao final, com os versos:

Mal começou Zé de Tonha,
Todos caíram vencidos:
Cantando suas vergonhas,
Foi ele o mais aplaudido.

Djavan inverte a lógica do desafio de repentistas: o grande vitorioso não é o que mais soube elogiar a si mesmo ou ridicularizar o oponente, e sim o que apresentou suas misérias ao público. Uma inversão nunca vista neste universo de improvisadores.

No entanto, Bandeira—  e também Djavan — seguem na métrica o estilo mais usado no repente, a redondilha, verso de sete sílabas métricas. Mas que no improviso é geralmente dividido em sextilhas, ou estrofes de seis versos. Bandeira prefere não fazer nenhuma divisão de estrofes em seu poema, mas deixou implícita uma divisão de quatro em quatro  pela organização das frases, especialmente no início, que Djavan aproveitou. E com isso, Djavan então construiu estrofes de oito versos cada — ou quatro, se colocarmos os versos dois a dois em cada linha.

Todas estas liberdades tomadas com relação às regras muito estritas de repente mostram que Djavan não tinha interesse em emular-se um deles. Seu olhar, assim como o de Bandeira, é de fora, mesmo sendo ambos de origem nordestina — mas ambos nascidos em capitais, Recife e Maceió, respectivamente. Djavan aproveita algumas características vagas do canto daqueles que quer retratar, mas seu olhar está menos voltado para os cantos, e mais para quem está por trás deles: os homens e suas histórias. Assim, Djavan consegue inverter alguns efeitos comuns no fazer da canção. Se usualmente a ida de um verso a uma região aguda aumenta a tensão dramática, aqui acontece o contrário: quando a voz vai ao grave, beirando o sussurro em alguns momentos à maneira de João Gilberto, é que o drama se mostra mais vivo.

Na construção harmônica de “Violeiros”, outra vez o que temos é uma emulação parcial: o objetivo nunca é seguir as regras do estilo, e sim ambientar o ouvinte naquele universo apenas para que a vista ultrapasse o canto e se fixe no drama humano. Assim, o violão de cordas de aço de Torquato Mariano faz às vezes de viola na introdução, mas logo após o de Djavan assume a condução com acordes que aproveitam as cordas soltas, como numa viola. O acorde inicial é particularmente interessante por omitir a terça: não é possível dizer, portanto trata-se de um mi maior ou menor - mas a melodia, na maior parte das vezes, opta pela terça menor. Trata-se de uma sutileza que, em parecendo simplificar a harmonia aproximando-a da afinação de acompanhamento dos cantadores, na verdade, a complexifica. Da mesma forma, os acordes seguintes aproveitam as cordas soltas do violão para introduzir dissonâncias (aqui lembrando o arranjo de Edu Lobo para a sua “Viola fora de moda”) que certamente não estariam na marcação dos improvisos.

Com tudo isso, Djavan vira o repente pelo avesso, e isso tanto em termos formais quanto literais: como que mostra o avesso do bordado, derrubando o cenário e mostrando um pouco da dura vida daqueles artistas. No caso de Otacílio, por exemplo, seu pai Raimundo Patriota saiu de um sertão dominado por coronéis (como no caso da Revolta de Princesa, que enfrentou o então governador João Pessoa - este acabou assassinado, gerando comoção nacional) e ainda sob a sombra do cangaço, percorrendo 350 quilômetros a pé com esposa e filhos pequenos (Otacílio tinha 10 anos) até Recife, onde passou a sustentar a numerosa família vendendo cuscuz no centro da cidade. Otacílio e seu irmão, então tiveram direito a um ensino formal que não haveria no interior - Dimas tornou-se mais tarde professor universitário, sem deixar de ser cantador e o mais velho, Lourival, também foi repentista afamado.

Este é apenas um exemplo, vindo de alguns nomes que participaram do momento em que seus cantos alcançaram novos públicos. O momento de maior glória de Otacílio ainda viria: em 1982, Zé Ramalho musicou um martelo agalopado de autoria do violeiro, e Amelinha, na época sua esposa, gravou. “Mulher nova, bonita e carinhosa faz o homem gemer sem sentir dor” fez um sucesso estrondoso em todo o país, com sua letra que ia de Helena de Tróia a Maria Bonita, demonstração de erudição típica dos cantadores. Otacílio é então convidado para programas de televisão, mas fica pouco à vontade: é instado a cantar novamente versos já feitos e recusa-se, já que a alma do repente é o improviso e quem repete versos é malvisto pelos pares. Logo está de volta para casa e seu sossego.

A pequena saga de Otacílio, vencedor do concurso em 1959 que deu origem ao poema de Manuel Bandeira e à canção de Djavan, é muito particular. O que houve e ainda há são centenas e centenas de cantadores anônimos, e na verdade, são estes que Djavan canta — Euclides, Joca de Carminha, Zé Jacinto, João Braúna, são todos nomes fictícios  — mas neles se concentra uma multidão. Ao final da letra, Djavan chega a mudar o local da disputa (que na vida real aconteceu no Rio de Janeiro), cantando “Cá no desvão do Nordeste / A vida não vale o nome”. Mas, assim como Otacílio nos programas de TV, aqueles homens estavam e estão no Nordeste, onde quer que estejam. Djavan faz um anti-repente, grave em vez de agudo, trágico em vez de festivo, quebrando suas regras rígidas para ouvirmos as vozes por trás dos improvisos, o tormento no olhar — como ele diz no refrão — de quem canta e ri. Um repente invertido, que o ultrapassa e olha através dele para ver o que tem atrás — a vida.

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