Colunista Convidado

Um livrão do pesquisador José Silas Xavier à altura das Proezas de Pixinguinha

segunda, 23 de outubro de 2023

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Tive a extraordinária honra de entrevistar Pixinguinha (1897-1973), em 1970, para a primeira das três séries de fascículos “História da Música Popular Brasileira”, da Editora Abril, das quais fui um dos editores, ao lado de José Ramos Tinhorão, Elifas Andreato, Julio Medaglia, Ary Vasconcellos, Lucio Rangel, José Lino Grunewald, Sergio Cabral e outros estudiosos. Me recebeu em seu “escritório”, a Uisqueria Gouveia, na Travessa do Ouvidor nº 6, no Centro do Rio, onde tinha mesa cativa, com direito a placa. Estava acompanhado do grande pandeirista e compositor João da Bahiana, e, na minha afobação de “foca”, com apenas dois anos de jornalismo, eu achei ter tirado o bilhete premiado. Instalei o gravador com seu pequeno microfone de apoio na mesa (a tecnologia da época), sem perceber que o acanhado bar, fechado, superlotado, com todos falando ao mesmo tempo, seria uma armadilha. Ao constatar o resultado inaudível, liguei desesperado para Pixinguinha, que, com sua bonomia, me tranquilizou: “Calma, meu filho. Venha na minha casa pela manhã e faremos a entrevista”.

Dia seguinte, lá estava eu na Rua Pedro Teles, em Jacarepaguá, na então longínqua zona oeste da cidade, recebido pelo mestre em seu heráldico pijama, para uma prosa franca e saborosa, regada a um cigarro com filtro. Foi obrigado a abandonar os fumos mais fortes (“o Naval era um verdadeiro almoço”, riu) após um enfarte, que também limitou sua bebida. Mas encerrado o papo, vi que ele foi se vestir. “Vou te levar lá embaixo”, avisou. “Não precisa, mestre”, reclamei. “Não, eu faço questão”. Na verdade, queria fugir da vigilância da esposa e escapar para uma lanchonete próxima, onde demos início aos “trabalhos” lá pelas 11:30 da precoce manhã. A cada chope que eu tomava, Pixinguinha entornava três. Era um profissional. Lá pelas tantas, ambos já calibrados, soltou: “Gostei do você. Não tem uma letra para eu colocar música?” Não esperei um segundo, e no melhor estilo “Conversa de botequim”, do Noel Rosa, pedi ao garçom papel e caneta. Rabisquei algo como “Encontro no bar” e entreguei a ele. Obviamente, nunca tive coragem de perguntar se ele tinha musicado aqueles garranchos etílicos. Mas o fotógrafo que me acompanhava comentou com um colega, e saiu no falecido jornal Última Hora uma notinha: “Pixinguinha tem novo parceiro”.

Meu primo do Méier, Roberto Chalub, tinha se mudado para um apartamento num primeiro andar da rua Domingos Ferreira, em Copacabana, esquina com Siqueira Campos, onde embaixo havia um bar daqueles bem antigos, ainda com porta vaivém. Certa tarde, da década de 60, ouvimos o som de um saxofone e fomos conferir: era ninguém menos que Pixinguinha, tocando com um pequeno grupo de amigos, numa canja dessas espontâneas e raras.

Fui remetido a essas preciosas lembranças pessoais, porque acaba de ser lançada a portentosa biografia “Proezas de Pinguinha” (Editora Telha, 735 pgs.) de José Silas Xavier, um dos baluartes da pesquisa musical do país. Funcionário, hoje aposentado do Banco do Brasil, (onde teve como colega o saudoso pesquisador, produtor e historiador Jairo Severiano, 1927-2022), Silas produziu para a FENAB (entidade ligada ao Banco) 14 discos entre 1969 e 1992. Entre eles, os clássicos “Chorando Callado”, “Velhos Sambas...Velhos Bambas“, “Os Pianeiros”, “Sarau Brasileiro”, “Noel Rosa”, “Ary Barroso” e “Choro – aos Mestres com Ternura”. No livro dedicado a Pixinguinha, além do relato biográfico, o pesquisador faz um levantamento monumental da obra do compositor. Inclui inéditas recém descobertas e, certamente, é a maior compilação de sua discografia já realizada, garimpada nas fontes mais diversas.


Só o verbete dedicado a “Carinhoso” (letra posterior de Braguinha), o maior clássico do flautista, saxofonista, arranjador, maestro, regente, band leader, ocupa nada menos de 28 páginas do livro. Silas esquadrinha as questões que envolvem a composição, desde sua suposta influencia do jazz, criticada pela pioneira revista Phono Arte, em 1929, quando ocorreu o primeiro lançamento, ainda instrumental. O compositor Pedro Caetano também teria feito uma letra para a música, “que não chegou a sair do papel”, e nada menos de três grandes vozes – Francisco Alves, Carlos Galhardo e Silvio Caldas - recusaram o convite para registra-la. “Carinhoso” se tornaria um dos maiores sucessos – se não o maior - do cantor das multidões, Orlando Silva, em 1937. Silas esmiúça incertezas da biografia do criador de grupos essenciais da fundação da MPB, como os Oito Batutas (1919), Orquestra Típica Pixinguinha/Donga (1920), Grupo da Guarda Velha e dos Diabos do Céu (anos 30), Pessoal da Velha Guarda (anos 40), autor de arranjos de incontáveis sucessos carnavalescos, de “Alá-Lá-Ô” a “Implorar”, “O teu Cabelo não Nega” e “O Orvalho Vem Caindo”.

Quando e onde ele teria nascido? 4 de maio de 1897, na rua do Paraíso, no morro de Paula Matos (Santa Teresa), conforme a certidão registrada em cartório? Ou 23 de abril de 1897, de acordo com a certidão de batismo, em Piedade? O próprio achava que tinha nascido em 1898 (durante muito tempo, esta foi a data aceita), em Piedade, e se mudado criança para o Catumbi. E o nome? Alfredo da Rocha Viana, como o do pai? Alfredo da Rocha Viana Filho, como consta da certidão de batismo da Paróquia de Sant’Anna? Ou Junior, como em um de seus depoimentos? O apelido Pixinguinha só se consolidou na mocidade, mas também há controvérsias sobre este ponto da vida do moleque anteriormente alcunhado de Carne Assada.

A avó Edwiges , o chamaria de Pizidin ou Pizindim, que ele imaginava ser “menino bom” em alguma língua africana. Outra versão dizia que o apelido oficial era uma deturpação de Bexiguinha, alusivo às marcas de varíola, que ele trazia no rosto. O fato é que além de ter sido anunciado em uma festa como “mestre flautista A.R.Viana (Pixigui)”, e em outra aparição como Pexinguim, em alguns dos primeiros discos que gravou, há desde Bexinguinha a Pexinguinha, até que se fixasse o apelido consagrado. Importa é que habitando a lendária Pensão Viana (rua Eleone de Almeida 27, no Catumbi), ele cursou uma verdadeira escola musical, frequentada por luminares da época como Sátiro Bilhar, Quincas Laranjeira, o trombonista Cândido Silva e dizem que até Villa-Lobos.

De família numerosa, os irmãos Octávio, o China, Léo e Henrique também foram músicos e a irmã Edith tocava piano e cavaquinho. Seu pai, Alfredo, modesto funcionário da Repartição Geral dos Telégrafos, era flautista, “tocava de primeira vista”, e acolhia na informal Pensão outros instrumentistas, como Irineu de Almeida, o Irineu Batina, tocador de oficleide, um instrumento que só recentemente voltaria a ser valorizado. Ele foi um dos primeiros mestres de Pixinguinha, decisivo em sua adesão à flauta, uma Balancina Biloro, “importada da Itália por seiscentos mil réis”, fortuna para a época.

O investimento valeu a pena, porque ainda de calças curtas ou com o uniforme do colégio São Bento, ele logo estaria tocando em lugares como a casa de chope La Concha, na Lapa. Em 1912, acumulava as funções de Diretor de Harmonia do Rancho Paladinos Japoneses, com a participação no Trio Suburbano, ao lado dos professores Pedro Sá, piano, e Francisco de Assis, violino. Foi convidado a tocar flauta na orquestra do Cine Theatro Rio Branco, dirigida pelo maestro Paulino Sacramento, em substituição a Antonio Maria Passos, adoentado. Recebido com ceticismo por sua pouca idade, ele surpreendeu quando começou a improvisar em cima da melodia, algo que o titular não fazia, por seguir rigorosamente a partitura.

Resultado: Pixinguinha ficou com o posto de Passos e decolou para a fama, exatamente por sua inesgotável genialidade.

Ela foi celebrada pelo erudito Villa-Lobos, que o convidou para a célebre gravação do projeto para o mercado americano “Native Brazilian Music”, com o maestro Leopold Stokowski à bordo do navio Uruguai, ao lado de Donga, João da Bahiana (a Santíssima Trindade da MPB), Luiz Americano, Zé da Zilda, Jararaca & Ratinho e Cartola, em 1940. Por Radamés Gnattali - com quem dividiu o cetro de principais orquestradores da MPB do século passado - em discos como “Vivaldi e Pixinguinha” (1982), com a Camerata Carioca, em que sua obra é confrontada com o mestre do barroco europeu, e “Uma Rosa para Pixinguinha”, também com a Camerata e a cantora Elizeth Cardoso (1983). O maestro erudito de vanguarda Julio Medaglia (autor do arranjo iconoclasta de “Tropicália”, de Caetano Veloso) elogiou os contrapontos de Pixinguinha, já no saxofone, na série de discos que fez com o flautista Benedito Lacerda, onde cedeu parcerias autorais para o sócio na empreitada. “As variações que fazia com seu saxofone em torno das peripécias flautísticas de Lacerda tinham sentido próprio, e poderiam – se destacadas – ser ouvidas como uma peça musical constituída”, escreveu ele no fascículo de Pixinguinha, o de nº2 da História da MPB.

Entre outras proezas de Pixinguinha, Silas ainda descreve a desbravadora excursão dos Oito Batutas a Paris, em janeiro de 1922, patrocinada pelo mecenas Arnaldo Guinle. Lá atuaram com sucesso durante meses no dancing Sheerazade e voltaram ao Brasil, em agosto, a tempo de participar dos festejos da independência brasileira. E, principalmente, da inauguração da radiofonia no país, num estúdio instalado no interior da Exposição do Centenário da Independência. Os Oito Batutas ainda gravariam dez discos (78 rotações) na gravadora Victor Argentina, que seriam posteriormente lançados aqui agrupados num CD do selo paranaense Revivendo, de mais um pesquisador ilustre, Leon Barg (1930-2009).

Outro episódio fundamental da carreira de Pixinguinha é narrado no livro de Silas. Sua participação como arranjador e regente da orquestra da Companhia Negra de Revistas, que estreou no teatro Rialto, no centro do Rio, em 31 de julho de 1926, com Jandira Aymoré, sua futura esposa, entre as coristas. A primeira peça, “Tudo Preto”, do teatrólogo, que assimilou o preconceito no nome artístico, De Chocolat (João Cândido Ferreira), colocou os negros como protagonistas, em pleno reinado da sensual atriz e bailarina Josephine Baker e da disseminação das Jazz Bands pelo país.

O percurso altivo do múltiplo músico o fez atravessar várias fases da história da MPB. Das ribaltas do teatro às trilhas do cinema como “Um Dia Qualquer”, do diretor e político Líbero Luxardo, de 1953, com locações em Belém do Pará, para o qual fez arranjos e regências. Já no vanguardista “Sol Sobre a Lama”, de Alex Vianny, de 1962, Pixinguinha teve como parceiro o poeta Vinicius de Moraes, um de seus admiradores da bossa nova, como Tom Jobim e João Gilberto (que regravou “Carinhoso”, evocando também seu ídolo vocal, Orlando Silva). O curioso é que a composição inicialmente intitulada “Lamentos”, lançada em 1928 pela Orquestra Típica Pixinguinha/Donga, também foi letrada por Vinicius. Com o nome no singular, “Lamento” se tornaria presença frequente nos discos modernistas. Do arranjo vocal em escalas de Magro, para o MPB4 a interpretações do virtuose violonista Baden Powell (outro admirador incondicional do mestre) e do saxofonista Paulo Moura (idem) com a pianista erudita Clara Sverner (idem idem).

Outro parceiro de Pixinguinha nos anos 1960 foi o poeta e produtor Hermínio Bello de Carvalho com quem fez “Fale Baixinho”, que, defendida pela estandarte do choro cantado, Ademilde Fonseca, ficou em 5º lugar no Festival Internacional da Canção, de 1967. Foi Hermínio quem produziu o antológico disco “Gente da Antiga”, em 1968, em que Pixinguinha contracena com o companheiro de longa data, João da Bahiana, e a incomparável Clementina de Jesus. A esta altura, o compositor de megaclássicos como “Rosa” (que chegou até o repertório da pop Marisa Monte), “Um a Zero” (magnífica peça futebolística, desafio à habilidade dos músicos, letrada por Nelson Angelo e gravada pelo boleiro Chico Buarque), “Naquele Tempo”, “Página de Dor”, “Vou Vivendo”, “Ingênuo”, “Sofres Porque Queres”, “Ainda me Recordo”, “O Gato e o Canário”, “Acerta o Passo”, “Proezas de Solon” (que inspirou o título do livro) e da chula raiada (mãe do partido alto) “Patrão, Prenda seu Gado” (com Donga e João da Bahiana), já tinha virado nome de rua. Em 30 de maio de 1956, ele recebeu as flores em vida (como diria Nelson Cavaquinho), quando o então prefeito do Rio, Francisco Negrão de Lima, deu o nome de Pixinguinha à rua Belarmino Barroso, no subúrbio leopoldinense de Ramos, onde ele habitava na época. Embora como todo gênio da arte de seu porte, sua morada seja o mundo.

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