Um rio, uma canoa e um assobio: os 85 anos de João Donato
Era a primeira vez que aquele menino se sentia melancólico. Estava ainda na Amazônia, sentando na beira do rio observando o movimento sereno das águas. O que lhe provocava aquela sensação estranha não era a paisagem, mas o som que provinha dela. Lá longe, um homem passeava numa canoa, flutuando serenamente pelas águas enquanto assobiava uma melodia qualquer. O menino ouvia atento, arrebatado, com a vida transformada para sempre. O que ele sentia não era exatamente tristeza, mas sim um inevitável espanto diante do primeiro encontro com a Beleza, pois aquela melodia produzida pelo homem na canoa era, até então, a coisa mais bela com a qual o jovem acriano já se deparara em sua curta vida.
Anos depois, esse menino acabou se tornando João Donato, e a melodia ouvida na beira do rio se transformou em uma música, Índio perdido, que ao ganhar letra de Gilberto Gil virou Lugar comum:
Beira do mar, lugar comum
Começo do caminhar
Pra beira de outro lugar...
Desde que ouviu esse assobio, João Donato nunca mais perdeu a fascinação pela música. Ainda criança (ele era um verdadeiro prodígio), aprendeu a tocar acordeom, piano, violino e qualquer outra coisa que emitisse som (dizem que gostava de “tocar” até as panelas da cozinha de casa). A partir de fim dos anos 1940 e ao longo de toda a década de 1950, consagrou-se como um importante músico brasileiro. Com seu piano e suas mãos, fez parte daquela geração que ajudou a “modernizar” a música popular brasileira, trazendo frescor e sofisticação para as melodias e arranjos do cancioneiro nacional, abrindo espaço e inspirando a bossa nova. Próximo de Tom Jobim (que produziu seu álbum de estreia em 1956, Chá Dançante) e principalmente de João Gilberto (diziam que os dois eram a mesma pessoa em termos de talento e excentricidade), João Donato foi muito bossa nova em seu tempo, mas não fez exatamente parte do movimento da Bossa Nova, pois quando essa estourou, em 1959, Donato já havia se mudado para os Estados Unidos, para onde fora com o intuito de se especializar no jazz, sua grande paixão. Por isso, seu nome permaneceu – por décadas – praticamente desconhecido pelo grande público. Seus discos não foram muito divulgados e raramente se citava Donato como um dos precursores da Bossa Nova (como fizeram com seus contemporâneos Dolores Duran, Dick Farney, Johnny Alf, etc.).
Mas isso pouco importa e jamais importou para João. Afinal, ele nunca deu a menor bola para status ou para o star system – seu negócio sempre foi simplesmente tocar música, tarefa à qual se dedicou com doce e desorganizada obsessão. Além do mais, enquanto o Brasil era engolido pela onda bossa novista que se ergueu no mar naquele fim de década, Donato surfava em ondas caribenhas nos vaporosos clubes de jazz da Califórnia, onde fez contato e trabalhou com diversas orquestras latinas. A experiência o aproximou ainda mais da música, e o colocou em contato com rumbas, merengues e mambos, aos quais acrescentou o samba e os ritmos do Norte do Brasil.
Até então, João Donato era estritamente um instrumentista: não acreditava em música com letra. Só mudou seus radicais princípios quando voltou definitivamente ao Brasil no início da década de 1970. O responsável por mudar suas ideias foi o cantor Agostinho dos Santos:
- Pô, Donato, a gente quer cantar as suas músicas. Você tem que deixar colocar letra nelas, não dá pra cantar música instrumental!
A sugestão só podia mesmo ter vindo de um cantor, e Donato acatou. A partir daí, os melhores letristas brasileiros puderam se servir do delicioso banquete que eram as inúmeras lindas canções de João (“canções clássicas contemporâneas”, segundo o pesquisador Ruy Casto). Dos que se fartaram, incluem-se Gilberto Gil (A paz, Bananeira, Lugar comum), Caetano Veloso (A rã, Surpresa, Naquela estação), Abel Silva (Simples carinho, Verbos do amor), Paulo André Barata (Nasci para bailar), Chico Buarque (Cadê você), João Gilberto (Coisas distantes, Minha saudade), Martinho da Vila (Gaiolas abertas, Daquele amor nem me fale), Cazuza (Doralinda) e, claro, seu irmão, o poeta Lysias Ênio, que colocou letra em clássicos como Amazonas, Até quem sabe e Flor de maracujá.
O marco dessa virada foi o antológico disco Quem é quem, de 1973, quando Donato passou a cantar suas próprias músicas. O álbum, de beleza arrebatadora, é considerado até hoje como um dos mais importantes da discografia brasileira, e contém até a luxuosa participação de Nana Caymmi em Mentiras (letrada pelo irmão Lysias):
Eu sei
Que todas essas coisas tantas
Que essas coisas todas tontas
São só mentiras de você
No ano seguinte, mais um marco: aproximado dos baianos, Donato participou do show e do disco Cantar, de Gal Costa, que marcou a volta da cantora às suas origens bossanovistas, deixando momentaneamente de lado a exuberante imagem de musa do Tropicalismo. Nesse disco (uma das pérolas mais bem lapidadas da MPB), Donato aparece como arranjador, pianista ou compositor em diversas faixas, como A rã, Até quem sabe, Flor de maracujá e Chululu. Uma verdadeira aula de delicadeza e beleza, como também o são diversos outros discos solo de Donato (Muito à vontade, The new sound of Brazil, A bad Donato...)
Hoje, ao completar seus 85 anos de vida, João Donato já é um senhor simpático (seu sorriso é quase uma grife), experiente, e desfruta do devido reconhecimento, o qual não teve por muitos anos, talvez por ignorância do público e da indústria musical, talvez porque ele próprio nunca tenha ligado para isso. O fato é que hoje ele pode dormir sabendo que é um dos maiores músicos e compositores do Brasil. Sim, a obra de Donato é gigante, eterna, e nada óbvia. É sofisticada, cool, delicada, mas nada chata, e passa longe de ser prepotente. Suas músicas têm suingue, são funkeadas, trazem em si o balanço e a malemolência dos rios da Amazônia e das praias do Rio de Janeiro: um som brasileiro, tropical, latino-americano, imigrante. Pode-se dizer que suas obras são acessíveis e simpáticas como o próprio criador. Basta observar o sucesso de The Frog, sua música mais conhecida: não há quem não saiba cantar o irresistível guereguedê-guiriguidim da única letra escrita por ele.
Com 85 anos recém-completados, João Donato ainda é aquele menino sentado de frente para o rio, extasiado com o assobio que vinha da canoa. A forma que ele conseguiu lidar com o choque do encontro com tão grande beleza foi passar a vida tentando reproduzi-la no piano. Ao escutarmos suas músicas, é possível dizer que ele conseguiu.
Ouvir João Donato é esquecer que o mundo é feio e se encontrar com o que é belo. Um rio, uma canoa, um assobio e nada mais.
Texto por: Tito Guedes
Fontes:
CASTRO, Ruy. A onda que se ergueu no mar: novíssimos mergulhos na bossa nova. São Paulo: Companhia das Letras, 2017.
http://dicionariompb.com.br/joao-donato
http://enciclopedia.itaucultural.org.br/pessoa12534/joao-donato
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