Na Ponta do Disco

Uma paraibana que “contém multidões”: 75 anos de Cátia de França

por Tiago Bosi

quinta, 24 de fevereiro de 2022

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Cátia de França tem algo de Nina Simone. Não pelo estilo vocal, muito menos pela persona artística, mas sim pelo fato de ambas terem sido introduzidas ao piano erudito muito cedo. Obviamente algo atípico para uma menina negra da Carolina do Norte da década de 1930 e também igualmente inusitado para uma também menina negra da Paraíba da década de 1950. Meras coincidências talvez, mas que – guardadas as diferenças e proporções – marcaram o início de carreira de duas artistas que, iniciadas no piano clássico, desenvolveram linguagens próprias, potentes e revolucionárias dentro da canção popular. 

Cátia nasceu em João Pessoa em 1947 e desde cedo desenvolveu aptidão para diferentes linguagens letradas e musicais. Sua mãe, Adélia de França, primeira professora negra da Paraíba, alfabetizou Cátia cantando. Em entrevista de 2021, Cátia confessou a importância de sua mãe para sua formação: “é na mãe que começa tudo”. Adélia deu um piano de brinquedo para sua filha aos quatro anos e, depois, um caríssimo piano Fritz Dobbert no décimo segundo aniversário de Cátia. Sua mãe teceu assim para sua filha um fio condutor entre a música, a literatura e a poesia que permaneceria como marca indelével da riqueza cultural da obra de Cátia por toda sua carreira. 

A aptidão à música fez Cátia buscar o violão num ato de anarquismo em relação ao piano erudito quando as letras que Cátia imaginava não mais casavam com as teclas do piano. Em 1962 a jovem iria estudar em um internato no interior de Pernambuco e com o violão recém-adquirido viria a se tornar um verdadeiro “Centauro musical”: “metade mulher, metade violão” – como ela se auto definiu com seu característico bom humor. Assim, a artista não se desgrudava de seu novo instrumento que aos poucos viraria uma verdadeira parte pulsante de seu ser. 

No campo musical, Cátia era aficionada por Luiz Gonzaga e Jackson do Pandeiro, já no campo das letras, a jovem artista lia avidamente literatura de Cordel, a poesia de João Cabral de Melo Neto e a obra de Guimarães Rosa entre tantos outros escritores. Isso mostra a rica e multifacetada formação cultural que Cátia recebeu – boa parte por conta dos seus pais – e que a artista começou a incorporar como influências as letras das canções que esboçava. Seu pai não queria que ela fosse artista e não olhava com bons olhos ao violão, porém enchia a casa de livros para que Cátia pudesse estudar e ter a formação letrada mais rica possível. 

Cátia assim poderia ter facilmente seguido carreira como professora ou profissional liberal qualquer, mas a melo-poesia já era algo que fazia parte da jovem artista de forma inequívoca e em 1966 ela se junta ao poeta Diógenes Bryner para compor a canção “Mariana” que ganharia o Festival Expedito Gomes da Paraíba.

Nos anos seguintes, Cátia se dedica ao teatro musical – que estava em voga na década de 1960 – e viaja para o Recife algumas vezes chegando a contracenar com Madame Satã. Pela aptidão musical da paraibana, era natural que Cátia ajudasse nos corais e nos arranjos das músicas nas peças teatrais. Isso a ajudou a fazer contatos na cena musical nordestina, chamando a atenção de Elba Ramalho com quem excursionaria pela Europa para promover outra peça musical de Elizabeth Marinheiro. 

A cena musical do Rio de Janeiro do início da década de 1970 era de total ebulição. Muitos nomes da canção produzida nos estados do nordeste redesenhavam uma nova contracultura que extrapolava os limites dados pelo tropicalismo musical do fim da década de 1960. Alceu Valença, Geraldo Azevedo, Belchior, Elba Ramalho, Zé Ramalho, entre outros nomes despontavam na cena musical trazendo novos ares regionais para a contracultura em um momento de impasse e renovação na MPB, mas também de explosão de vendas e arrefecimento das guerras culturais vividas na década de 1960 –  tudo isso foi sintetizado pelo Festival Phono 73 e o clima “paz e amor” que havia se instalado na cena musical emepebista.

Em 1979, ela era sanfoneira na banda de Zé Ramalho, que topou produzir seu primeiro disco. Fonte da imagem: Revista TRIP/Reprodução

É nesse contexto, que uma jovem paraibana de 25 anos chega ao Rio de Janeiro em 1972 à convite de Elba Ramalho que além de lhe ajudar num primeiro momento com um emprego de datilografa, ainda a introduz a rica cena musical carioca que Cátia em pouco tempo entraria de cabeça. Cátia conta que enquanto datilografava, sentia a máquina como um instrumento percussivo e imaginava ritmos e melodias enquanto as letras surgiam no papel. A artista via música em tudo e logo conheceu, por via de Elba, seu primo Zé Ramalho que ficaria encantado de cara pelo talento musical, pela cultura e entrega da artista paraibana. Não à toa, Zé Ramalho convidaria Cátia para tocar sanfona e percussão nas faixas de seu LP homônimo de 1978 (CBS). 

Aquela altura Cátia já havia feito uma série de excursões com músicos de peso como Pedro Osmar, Damilton Viana, Vital Farias e além de estar bem “apadrinhada” pelos primos Ramalho, ainda conhecia e era muito bem quista por muitos músicos da cena carioca. Quando Cátia anunciou, incentivada por Zé Ramalho, que iria finalmente gravar seu primeiro álbum de estúdio, todos queriam participar do álbum da paraibana. O resultado é “20 Palavras ao Redor do Sol” (CBS, 1979), um álbum que já nasceu uma obra-prima e que conta com a assinatura de Zé Ramalho na produção musical, Sivuca (sanfona e piano elétrico), Bezerra da Silva (berimbau), Dominguinhos (sanfona), Chico Batera (bateria), Lulu Santos (guitarra elétrica), Elba Ramalho e Amelinha (vocais). Além de contar com Sérgio Natureza na parceria da canção “Ensacado” e Xangai e Israel Semente em “Djaniras”.

A canção que dá título ao álbum é uma elegia à matéria literária nordestina: “Falo somente como que falo/ com as mesmas vinte palavras girando ao redor do Sol/que as limpa do que não é faca/ de toda uma crosta viscosa/ resto de janta abaianada/ que fica na lamina e cega/ seu gosto da cicatriz clara”, do poema “Graciliamo Ramos” de João Cabral de Melo Neto (Terça-feira, 1961). O poema de Melo Neto é uma homenagem ao escritor alagoano de “São Bernardo” e, além disso, traduz muito do estilo poético de Melo ao evidenciar um texto que busca limpar-se do lirismo da voz e sua tendência natural à melodia: “que as limpa do que é faca/ de toda uma crosta viscosa”. Como se o poeta desejasse constituir uma poesia que retira o impulso vocal natural de uma melodia refém da vocalização e que se refaz como palavra fria na página: “falo somente como que falo” –  Melo retira, assim, a “saliva da boca” e reitera uma poesia da palavra “seca e vítrea”. 

Cátia, leitora ávida e atenta de Melo enxerga nisso uma provocação. Como uma multi-instrumentista nata e com ouvido totalmente voltado para a música, Cátia entende que a relação entre poesia, fala e música é imanente. Os trovadores medievais da canção de gesta já haviam consolidado essa relação quase que inseparável entre a fala, a poesia e a melodia e foi apenas na era moderna que a poesia ganhou corpo próprio se separando da música. O que Cátia faz então é homenagear João Cabral subvertendo sua obra e, possivelmente, fazendo o oposto do que o poeta gostaria, mas ao mesmo tempo levando a poesia de Melo a um novo patamar melo-poético. Cátia é, sem sombra de dúvidas, uma verdadeira neo-trovadora

Já em “O Bonde”, primeira faixa do álbum, De França canta sobre o tempo e sua relação com um dos personagens de José Lins do Rego, também uma influência cara à formação da artista. Em “Itabaiana”, Cátia fala sobre a seca, a festa, a chegada e a partida – temas do sertão que viu e vivenciou, remontando o drama de “Morte e Vida Severina”. 

Além da homenagem a sua formação literária, Cátia traz em “20 Palavras...”, canções que demonstram a multiplicidade de seu projeto artístico, a facilidade em que transita entre música clássica/jazz  e a música “popular” e a relação fluida que carrega entre a literatura e a fala. Em “Kukukaya”, possivelmente sua canção mais gravada por outros artistas (Xangai, Elba Ramalho, Geraldo Azevedo, Quinteto Paraíba) Cátia revela que se inspirou em um termo cigano lendo uma revista de curiosidades em um consultório médico. Dali surgiria uma personagem cigana, digna de Santa Sara Khali com poderes de vidência e que revela pelo “jogo da asa de bruxa” o futuro dos jogadores que em verdade é próprio “jogo surdo da vida”. O violão bem ritmado em contraposição a flauta livre com linhas melódicas inesperadas que voam e “pairam” na canção criam um efeito belíssimo em uma das canções mais interessantes e misteriosas do álbum. 

Destaque também para “Ensacado” de Cátia e Sérgio Natureza, uma canção menos “solar” como as outras, mas que traz uma bela linha melódica e na letra a verve existencialista e surrealista de Natureza: “segure a barra/ requente o caldo da sopa fria/ vá cultivando a semente/ até que um dia arrebente o saco cheio de sol”. 

Acredito que o álbum “20 Palavras...” seja de fato esse “saco cheio de sol” que Cátia trouxe em sua mala lá da Paraíba e o “arrebentou” no Rio/Brasil nos brindando com uma obra arrebatadora que atravessou gerações e que ano que vem completará 45 anos de seu lançamento. Cátia seguiu sua brilhante carreira com outros cinco álbuns de estúdio gravados, mas seu álbum de estreia permanece uma voz que não se cala e que conseguiu a proeza de amalgamar diferentes gêneros musicais, temas estéticos, músicos de varias tradições musicais, instrumentação, arranjos e timbres e, principalmente, linguagens tão distintas que apenas Cátia conseguiria unir, dar forma e fazer o sentido do texto voar dentro da melodia. 

Em entrevista à Revista Trip em 2017, Cátia se definiu como “uma mulher que tem sangue nas ventas, é negra, índia, cigana, bruxa, candomblecista e aquariana”. Hoje aos 75 anos Cátia continua sendo tudo isso e mais um pouco. E seu “20 Palavras ao Redor do Sol”, continua sendo mais que um álbum, um tambor de axé e uma flecha no tempo carregada de inúmeros sentidos, regionalismos, histórias humanas, modernismos, gêneros musicais, experimentalismos e significados/ significantes que os críticos musicais do futuro ainda terão muito que desvelar e compreender. A obra da artista paraibana possui verdadeiras camadas de linguagens, subjetividades e tempos históricos.

É por essas e outras que Cátia de França contém multidões.



Tiago Bosi Concagh é historiador, professor e produtor cultural. Mestre em História Social pela USP e bacharel em produção cultural pela FAAP.  Idealizador do canal Na Ponta do Disco e do III Encontro de Música Brasileira: Sons da Diáspora, além de editor da Revista Lamella. 


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