Música

UNIDOS CONTRA A INTOLERÂNCIA: quando Exu abriu os caminhos da Grande Rio

por Caio Andrade

sexta, 29 de abril de 2022

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E o carnaval carioca conhece sua primeira campeã inédita após 25 anos. Depois de muito trabalho e dedicação, a Acadêmicos do Grande Rio finalmente alcança a parte mais nobre da tabela da apuração com um desfile memorável e um enredo pra lá de importante: Exu. A última escola a debutar no Rio de Janeiro e se sagrar campeã pela primeira vez havia sido a Viradouro em 1997.

Demerson D'Alvaro interpretando Exu no Desfile da Grande Rio — Foto: Alexandre Durão/G1

A Expectativa Por um Desfile Que Demorou a Acontecer

Esse carnaval por si só já possuía contornos de emoção e expectativa. Era a primeira celebração de uma vida “pós-pandêmica”, quase de volta aos trilhos, depois de 2 anos sem folia devido à pandemia de Covid-19. Vale lembrar que, desde 1984, quando foram inaugurados os desfiles na Marquês de Sapucaí, as escolas nunca ficaram com um hiato de um ano sem as apresentações, com o povo conhecendo ano após ano a(s) campeã(s).

Os desfiles, que estavam inicialmente previstos para fevereiro de 2022, ainda tiveram que ser adiados pelas autoridades que não consideravam, à época, seguro para a realização do evento. Adia-se, então, a grande festa para o feriado prolongado de Tiradentes e São Jorge, começando numa quinta-feira. As escolas do Grupo Especial desfilam nas noites de sábado e domingo e a apuração acontece na terça - não na quarta-feira de cinzas, como de costume.

Se o roteiro, de um modo geral, já era mais do que especial tanto para as escolas quanto para o grande público, para a tricolor de Caxias teve um sabor ainda mais único: foi o primeiro e tão sonhado campeonato em pouco mais de 30 anos de fundação com um desfile arrebatador, digno dos grandes da Era Sambódromo. Que história! Mas, para chegarem até aqui…


Campeã das Vice-campeãs? Nunca Mais!

A vitória da escola neste carnaval veio para apagar de vez aquela sensação de “quase” conquistada ao longo desse século. Ao todo, amargurou 4 vice-campeonatos em 15 anos: 2006, 2007, 2010 e 2020, mesma quantidade de vezes que Tijuca, Beija-flor e Salgueiro, que já tinham pelo menos um título. Em 2006, na primeira vez, a escola foi penalizada por dois décimos e perdeu no desempate para Vila Isabel. Mais recentemente, em 2020, quando tudo parecia muito certo, perderam também no desempate para a Viradouro no único quesito que realmente poderia tirar a escola da disputa. E tirou.

Como se não bastasse, a glória veio com um enredo, acima de tudo, necessário: “Fala Majeté! Sete Chaves de Exu”, contando a história de um dos orixás mais incompreendidos e demonizados da cultura iorubana numa tentativa de desmistificar esse imaginário maléfico criado e repassado há décadas. É curioso pensar que, na santeria cubana, por exemplo, Exu é associado ao menino Jesus, enquanto no Brasil, para leigos, associado às “coisas do demônio”, “diabo”, enfim, talvez pelas cores, pela simbologia, ou por puro racismo religioso gratuito.

A vitória de Exu na avenida foi mais uma prova do poder lúdico que os desfiles proporcionam à população. A tentativa de mudar o pensamento preconceituoso através de uma história contada por música, danças, alegorias e fantasias mostra o poder de comunicação que esse evento magnânimo consegue ter. Adivinha, aliás, quem é o orixá da comunicação? Pois é, ele mesmo.

Gabriel Haddad, um dos carnavalescos da Grande Rio, comentou no G1 sobre Exu como escolha do tema:

“Exu é uma divindade complexa, é energia circular e infinita, movimento, luta, insubmissão, mudança, que se transforma em incontáveis entidades e que tem muito a ver com a nossa ancestralidade. Mas que é visto com restrição por muita gente. O enredo deste ano, como dos anteriores, visa a desconstruir essa imagem estereotipada, o racismo religioso, a intolerância e a demonização de religiões como o candomblé, a umbanda e as macumbas. Por isso, as sete chaves, para abrir o conhecimento sobre Exu"

Foto: Gabriel Monteiro/Riotur

Quem Viu e Fez a História Acontecer

Cada escola possui uma comunidade que a abraça e faz acontecer tudo aquilo que assistimos na avenida. A seguir, alguns depoimentos de pessoas que trabalharam duro, com muita dedicação e carinho, ao longo de meses, para que esse título fosse possível.

“Foi incrível, a melhor experiência da minha vida até agora. Eu trabalhei com carnaval em 2013, 2014 e 2015 como aderecista na União da Ilha e Imperatriz. Depois de um longo tempo longe da cidade do samba, eu voltei com um trabalho autoral num carro alegórico, o que é uma realização muito grande. Aí, o Leonardo Bora me abriu essa porta, fui atrás dele interessada em fazer parte de alguma forma desse desfile porque achava o enredo muito forte, e recebi esse chamado. Não só eu, como outros artistas que trabalham com arte urbana, grafite, como tem a ver com o enredo, com os artistas de rua de certa forma representados com essa energia da arte de rua, falando de uma energia que também vive nas ruas. E foi incrível, estou muito feliz por isso e me deu vontade de continuar de certa forma fazendo alguma coisa relacionada a carnaval, sabe?

Ao mesmo tempo que a pintura me deu uma distanciada do carnaval porque eu fazia adereços, outra coisa, acabou me abrindo uma porta no carnaval também. Nunca imaginei estar contribuindo com uma pintura autoral para um desfile, menos ainda a campeã. Isso pra mim foi uma realização.”

(Ju Angelino, artista urbana e multiartista)


"A escola começou a se organizar muito bem de uns anos pra cá. Ela começou a se reestruturar bastante pra chegar a esse ponto. No último carnaval, em 2020, ela já estava bastante preparada e bateu na trave. O carnaval desse ano já estava meio que alinhado com o que eles queriam fazer, tanto que os garotos já vinham trabalhando esse enredo a partir de outros enredos que já fizeram.

Sobre o desfile, todo mundo estava muito seguro do que poderia acontecer, tinha muita confiança nos carnavalescos, na escola, na diretoria, na bateria principalmente, nos intérpretes, porque estava tudo muito alinhado um com o outro. Com isso, só aconteceu: um carnaval bonito, bem feito, que todo mundo queria ajudar um pouco, entende? Deu no que deu, a Sapucaí gostou, a escola cresceu na avenida e conseguiu o primeiro título."

(Matheus Araújo, arquiteto, urbanista e integrante da ala de tamborins da Grande Rio)


"Foi uma experiência muito única, tanto tratar de um enredo importante na nossa religiosidade, pra mim especialmente que sou de umbanda. Eu falava pelo barracão, enquanto a gente andava: 'gente, isso aqui vai ser histórico! O que eles estão fazendo, ninguém faz.' Eu olhava aqueles carros todos os dias, a gente trabalhava com a certeza de que não seria qualquer desfile que estava passando pela Sapucaí. Muitas pessoas falavam que estava com uma energia pesada, você via pela Cidade do Samba as pessoas comentando: 'aí um carro pega fogo, não sabe por quê, aí um carro quebra porque não se cuida', sem saber o que estava acontecendo lá dentro. Nunca teve um clima pesado no barracão, nunca se sentiu isso, é muito fruto da intolerância religiosa das pessoas.

Foi incrível trabalhar com amigos tão talentosos, unindo seu conhecimento, junto aos ensinamentos do Leo e do Gabriel, que são artistas incríveis. A gente passou muita dificuldade financeira, parte da equipe, eu inclusa, não tem tantos anos de barracão, então a gente teve aquele período de se adaptar e entender como as coisas funcionam, e graças a outros trabalhadores, como a Renata, que é uma das empreiteiras de carro lá dentro, orientou muito a gente nesse quesito. O Diego também, supervisor de barracão. Foi um trabalho muito lindo mas acho muito importante também saber que veio de muita dificuldade, não foi fácil, faltou mão de obra.

Trabalhar com o Nicolas, que já tem um trabalho de criação voltado ao acúmulo de materiais, pensar em como se constrói um lixo artisticamente agradável, isso tudo enriqueceu muito a gente enquanto artistas. A experiência também de lidar com os coreógrafos, mas principalmente fazer tantos elementos repetidos. A gente deve ter feito mais de 3000 trouxinhas tanto para o tripé da Comissão de Frente, quanto para o carro, trabalhar com essa escala cenográfica que vai ser vista de diversos ângulos é muito complexo. Acima de tudo, quando a gente pisou na Sapucaí, a gente se viu muito realizado. Todos choravam, a gente via a reação do público, cantava o samba, e sabia que aquelas primeiras impressões realmente eram verdadeiras. Ali, a Grande Rio, o Leonardo e o Gabriel estavam fazendo história. E ainda bem que a gente pode fazer parte dessa história com eles."

(Sophia Chueke, estudante de cenografia e artista plástica)


Sendo assim, quem assistiu ao desfile e, no mínimo, não repensa a visão que tem sobre outras religiões, orixás, e principalmente Exu, se nega a aprender com o que o grande espetáculo do carnaval tem para apresentar. Parabéns à Acadêmicos do Grande Rio. Laroyê, Exu.



Caio Andrade é graduando de História da Arte na Escola de Belas Artes (EBA/UFRJ) e Assistente de Pesquisa e Comunicação no Instituto Memória Musical Brasileira (IMMuB) desde 2020Grande apaixonado por samba, pesquisa sobre o gênero há mais de uma década, além de tocar em rodas e serestas no Rio de Janeiro.

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