Colunista Convidado

Vanguarda e raiz do “Verbo chão”, da Conversa Ribeira

segunda, 23 de dezembro de 2019

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Marginalizada por uma parcela esnobe da MPB principal – de DNA essencialmente urbano – por sua proveniência interiorana e popular, a chamada música caipira também permite releituras progressivas e até vanguardistas. Quem empreende com êxito a travessia é o trio Conversa Ribeira no reluzente álbum “Do verbo chão” (Independente). Formado por Daniel Muller (piano e acordeon), João Paulo Amaral (viola caipira e voz) e Andrea dos Guimarães (voz), o grupo já acumula 17 anos de atividades. Após o primeiro CD lançado em 2007, foi selecionado nos projetos Pixinguinha (Funarte) e Rumos Itaú Cultural. Em 2011, ganhou o prêmio Inovação do Festival Voa Viola, e em 2014, o Prêmio Cata-Vento (Rádio Cultura AM), de Melhor Grupo de Raiz. Já dividiu o palco com as orquestras Municipal de Jundiaí e Sinfônica de Sorocaba, mais artistas como Guinga, Inezita Barroso, Renato Teixeira, Monica Salmaso e Paulo Freire, além de ter representado o país em festivais no México e em Portugal.

Em seu terceiro título, independente viabilizado por meio de campanha de financiamento coletivo (Catarse), o Conversa Ribeira transpõe abismos estéticos. Consegue conectar, por exemplo, a primeva dupla caipira Torres e Florêncio da moda coleante “Gostei da morena” (“eu te quero bem, morena luxosa/ do corpo bem feito e da pele mimosa/ amarra os cabelo fita cor de rosa/ quando bate o vento fica balanceosa”), de 1944, e a obscura incursão na seara da dupla urbana, Ivan Lins e Vitor Martins (embora este tenha nascido em Ituverava, interior de SP) em “Atrás poeira” (“ele pegou um baio e como um raio sumiu no atalho”), de 1986. Autor do clássico hino “Perfil de São Paulo”, perpetuado, em 1956, por Silvio Caldas, Francisco de Assis Bezerra de Menezes fornece o hilário e agalopado “Burro chucro” (“vale quinhentos mil réis/ se tu amonta de uma vez/ inda pago o teu enterro/ como já paguei pra treis”), gravado por Inezita Barroso após o lançamento por Vanda de Maio, em 1962. Pilar do universo caipira, foi Inezita quem recolheu, em Itapecirica da Serra, SP, nos anos 1940, a divertida “Moda da onça” (“um bicho pintado, a cabeça chata/ as orelha redonda, ai os dente arvo/ e os bigode comprido/ e o cabo acumulado”), encerrada num estrondoso cluster de piano.

Ela contrasta com a tristíssima epopéia de “Herói sem medalha” (“eu vendi aquele boi/ pros filho não passar fome”), de Sulino, da dupla com Marruero, rasqueada na viola com interlúdio de acordeon. Em outro extremo, literalmente, flutua a canção móbile “Olho d’água”, obra prima de Paulo (filho de Tom) Jobim e Ronaldo Bastos, gravada por Milton Nascimento no megaclássico disco “Clube da Esquina no. 2”, de 1978. Crivado de construções orquestrais de impacto e tessitura delicada, “Do verbo chão”, conduzido pela voz cristalina de Andrea, confronta ainda a pesquisa de mitologias indígenas de “Cururu mitológico”, de outro integrante do trio, Daniel Muller e a cariciosa ode romântica “Pé de ipê” (1953), de Tonico, da histórica dupla com Tinoco. Fecha o cortejo a redentora “Amanheceu” (1990), do modernizador da música caipira Renato Teixeira. Um acorde na aurora: “Amanheceu, peguei a viola/ botei na sacola e fui viajar”.

Tárik de Souza

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