A música de

“Voz trovejante”: as diferentes camadas de Cássia Eller

por Carlos Eduardo Pereira de Oliveira

quinta, 29 de dezembro de 2022

Compartilhar:

“(...) Conjunção explosiva de uma voz trovejante; de um senso raro de interpretação; de um conhecimento musical tão gigante quanto intuitivo; de uma personalidade aparentemente tímida e retraída, mas eloquente demais no palco” (SANCHES, 2001, p.A7). O jornalista Pedro Alexandre Sanches definiu a performance musical de Cássia Eller com essas palavras, que vieram na Folha de São Paulo do dia 30 de dezembro de 2001. Seu texto é eloquente ao afirmar, sem meias-palavras, que o Brasil perdia, naquele dia, sua maior voz feminina. Longe de procurar afirmações tão definidoras, restrinjo a pensar sobre como Eller se encaixa em uma longa tradição de artistas, intérpretes de grandes canções e donas de incríveis formas de cantar. Nesse ponto, concordo com Sanches. Naquele triste final de 2001, o Brasil realmente perdia uma de suas principais vozes. 

O mês de dezembro para Cássia Eller era especial. Nasceu no Rio de Janeiro, no dia 10 daquele mês, em 1962, as vésperas do golpe civil-militar. Filha de militar, passou grande parte dos seus primeiros anos de vida acompanhando a família por diversas regiões do Brasil: Belo Horizonte, Santarém, Brasília. Foi na capital federal, após uma frustrada tentativa de trabalho no Ministério da Agricultura como secretária, que iniciou sua carreira na música. A versatilidade estava ao seu lado, participando de corais e óperas, e liderando um  trio elétrico na cidade. A carreira profissional começou ao lado de Oswaldo Montenegro, como cantora de apoio.

Existem múltiplas camadas para tratar sobre a vida e obra de Cássia Eller. Isto se dá pela forma como sua própria trajetória foi construída, em contato com uma memória elaborada após o momento de seu falecimento. A imagem sobre a artista traz uma duplicidade entre a explosão nos palcos e a timidez na pessoalidade. Este paradoxo foi exaustivamente considerado sua personalidade mais marcante, principalmente pela estranheza que causava no público. Como pode uma voz tão potente nos palcos, acusar em outros espaços sua timidez e vergonha do mesmo público? Falar sobre Cássia é tratar esses dois mundos como a unidade potente de seu fazer artístico. 

O palco era o espaço que destinava para destilar toda sua força. Suas performances eram geralmente colocadas como uma de suas principais marcas. Algo que lhe daria forma e conteúdo. No alto, rodeado de músicos e assistida por muitas pessoas, Cássia conseguia catalisar toda a timidez em um furor única, gerando uma força catártica que cativava qualquer público. Isto fica ainda mais forte ao olharmos para sua apresentação no Rock in Rio III. O festival voltou para mais uma edição em 2001, uma década após a segunda edição, e duas da primeira. Era uma tentativa de retomar o impacto causado pela edição de 1985, que se estabeleceu no imaginário musical brasileiro como um dos principais eventos daquela década (ENCARNAÇÃO, 2011). Isso ocorreu por uma série de fatores, como a intensa transmissão realizada pela Rede Globo, a grande vendagem de ingressos, alto número de público jovem presente, shows internacionais e o aprofundamento do rock nacional como um dos principais gêneros musicais do período. Trazer o Rock in Rio era dar seguimento ao que teria sido interrompido em 1991, algo simbolizado pela reconstrução da Cidade do Rock no local original do festival da década de 1980.

Cássia Eller Divulgação/Veja Rio

O Rock in Rio III ficou marcado pela chuva de garrafas plásticas em Carlinhos Brown, em um vago e vazio “protesto” contra a presença do músico brasileiro em um dia que seria dedicado a outros segmentos musicais, particularmente aqueles ligados ao metal. Outra questão antes do início dos shows foi o boicote de algumas bandas brasileiras ao evento, como O Rappa. A alegação dos artistas veio por conta da desvalorização dos cachês, em comparação aos estrangeiros, e a recusa, por parte da organização, das bandas conseguirem regular os instrumentos antes dos shows - também permitido às bandas de outros países. Entre os problemas, o show de Cássia Eller despontou como um dos melhores momentos do festival.

Naquele momento, Cássia vinha do lançamento de “Com Você... Meu Mundo Ficaria Completo”, quinto álbum de estúdio e um de seus mais icônicos discos. A capa trazia a imagem da cantora sem calças, vestida com uma camiseta branca e uma peruca com longos cabelos pretos. Gringo Cardia (2019), o artista responsável pela capa, colocou a necessidade da peruca por conta da possível “agressividade” que poderia passar caso Cássia aparecesse careca, como estava naquele período. Ainda, destaca a imagem “punk” que poderia transmitir e que dificultaria as vendas. Cardia fala a importância em manter uma espécie de aura desse punk, mas com outra entrada. Nando Reis (2019), produtor desse álbum, coloca a capa como uma perfeita composição do momento de sua vida, marcado por mudanças no seu repertório, que desembocaram nesse disco. Eller fazia questão de afirmar que a mudança aconteceu como pedido de seu filho, Francisco, que alegava que a mãe berrava muito ao cantar (ISTOÉ, 2001). 

Em “Com Você…”, Cássia trouxe interpretações para letras de grandes artistas brasileiros, uma tônica de seus trabalhos anteriores. O disco de estúdio “Veneno AntiMonotonia”, de 1997, trazia uma coletânea de composições de Cazuza, entoadas por Cássia Eller. O álbum de 1999 traz canções de Caetano Veloso (Gatas Extraordinárias), Marisa Monte e Moraes Moreira (Palavras ao Vento), e do produtor Nando Reis. É dessa parceria que surge “Segundo Sol”, um de seus principais sucessos, e “All Star”, que ganhou maior destaque na gravação do próprio Reis, como uma homenagem à cantora. Teve uma recepção mediana por parte dos críticos musicais, que acusavam o disco de realizar um “projeto de suavização da imagem de Cássia”, retirando sua personalidade artística. Ainda assim, destacava que se tratava do disco “mais bem produzido e coeso de sua carreira” (FOLHA DE SÃO PAULO, 1999), algo que culminou em uma indicação ao Grammy Latino naquele ano, na categoria de “Melhor Disco de rock em Língua Portuguesa”.  

Em entrevistas nos dias anteriores ao Rock in Rio, ela destacou sua vontade em fazer parte do festival, ao mesmo tempo, do quanto aterrorizava tocar para um público tão grande. A escolha de Cássia em iniciar sua apresentação com voz e violão, traz essas diferentes camadas que formavam sua verve artística. Por um lado, era a necessidade em mostrar aquela cantora reformulada de “Com Você…”, entoando canções mais lentas, mas com a mesma força vocal. Por outro, a afirmação de uma artista pronta para enfrentar um grande público, deixando sua timidez escondida ou, ainda, a utilizando como agente promotor de sua própria força. Ali, estava apenas Cássia de frente ao público de milhares de pessoas, abrindo um dos maiores shows de sua carreira. A escolha do repertório trouxe suas camadas diversas, sua amplitude musical e suas vontades em forma de canção. Seu lado roqueiro apareceu com um poderoso cover de “Smells Like Teen Spirit”, da banda estadunidense Nirvana, e da interpretação de “Quando a Maré Encher”, se apresentando ao lado da Nação Zumbi. Por outro, as músicas presentes em “Com Você…” também estiveram, como “Segundo Sol”, recheados com composições de grandes nomes da MPB, como Chico Buarque (Partido Alto) e João do Vale (Coroné Antônio Bento). 

A repercussão de seu show foi intensa, tanto pela mistura no repertório, quanto pela performance. Tárik de Souza (2001, p.4), no Jornal do Brasil do dia seguinte à apresentação, destacou a força e o vigor de sua imagem, arrematando que “Cássia cospe fogo”. Além disso, destacou que ela “cuspiu a naftalina do passado e abriu a cortina do presente”. A analogia de Souza é emblemática, pois a carreira de Cássia alcança um novo patamar para o mercado após seu show no Rock in Rio. Isto foi coroado com a gravação do “Acústico MTV”, em março daquele mesmo ano, e lançado dois meses depois. O projeto se inseriu como um escape da indústria que sofria, desde os últimos anos da década de 1990, com diferentes crises. 

A indústria fonográfica brasileira entrava na década de 1990 enfrentando uma crise nas vendas de discos, mas com um grande crescimento nestes números entre 1993 e 1997. Entretanto, os últimos anos foram marcados por um novo arrefecimento nas vendas, conduzindo para um novo momento de crise. Nestes momentos, de acordo com Eduardo Vicente, a indústria se apoiava em uma gestão conservadora de seus artistas. O ponto principal era recuar no lançamento e promoção de novos artistas, diminuindo seus investimentos nessa área. Além disso, ela voltou-se ao “porto seguro das compilações de sucessos”, em uma “busca pela redução de custos e despesas, bem como do risco no investimento” (VICENTE, 2001, p.143). Esse contexto levou a indústria a radicalizar seus processos sublinhados na década anterior, e intensificar essas condições existentes. O projeto “Acústico” se inseria nesse contexto, como uma importante produção para a indústria e projeto interessante para os artistas. O convite para Cássia Eller se deu no âmago da explosão de seu show no Rock in Rio, aliado a essa realidade industrial da área musical. 

“Acústico” era uma iniciativa capitaneada pela MTV, em conjunto as majors que atuavam no Brasil. O projeto foi delineado pela emissora estadunidense como “Unplugged”, que consistia em artistas fazendo uma compilação de seus principais sucessos, sem o uso de instrumentos plugados em amplificadores. A filial brasileira trouxe o formato e construiu um projeto de sucesso, com grandes nomes da música fazendo parte, como Gilberto Gil, Gal Costa, Titãs e Rita Lee. Além disso, “Acústico” era um importante produto da emissora no Brasil, com altas vendagens de discos e exaustiva exibição da gravação na programação. Por último, é sintomático o fato de “Acústico” trazer esses nomes consagrados para fazer parte, em uma tentativa de cristalizar uma ideia sobre a música no Brasil. Dessa vez, a partir de uma roupagem diferente, realizada por uma emissora voltada ao público jovem. 

As camadas de Cássia Eller apareceram com força na gravação deste “Acústico”. Com um repertório dos seus principais sucessos, até novas canções e interpretações de grandes artistas brasileiros e estrangeiros. O resultado foi a apresentação de uma grande versatilidade de segmentos musicais, trazendo outras faces para canções já consagradas no imaginário musical, colando com os objetivos trilhados pela MTV. A junção formou seu maior sucesso comercial, ultrapassando a marca de 500 mil discos vendidos, sendo um dos maiores do próprio projeto. Além disso, colocou “Malandragem” nas listas de músicas mais ouvidas nas rádios e intensamente veiculada na emissora musical. É difícil não lembrar do palco desse show, com flores vermelhas ao fundo, e Cássia sentada em um banco no centro, sem trazer à tona as primeiras frases dessa canção. 

Inegavelmente, o “Acústico MTV” se tornou um marco em sua carreira. Além disso, se consolidou como uma de suas maiores exibições ao vivo, no palco, mostrando mais uma de suas tantas camadas. Muitos críticos trouxeram essa produção do ponto de vista próximo ao que falavam sobre “Por Você…”: uma artista com muito poder, mas abrandado. Discordo destas afirmações, pois acredito em uma força catalisada pela sua voz, que, por mais que não apresentasse alguns aspectos que esses críticos destinavam como sua personalidade, ela ainda estava lá, muito bem marcada pelo grave da sua “voz trovejante”. Cássia, que nos deixou naquele mesmo ano de 2001, ainda habita a memória de muitos fãs, que até hoje trazem essas (e outras) apresentações em vídeos, postagens em redes sociais. Ou, por meio de biografias e documentários sobre sua vida, que tentam dar conta desta multiplicidade e versatilidade que eram suas marcas.  



REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BRASIL, Canal. Cássia Eller - "Com você meu mundo ficaria completo" | Arte na Capa. YouTube, 2019. Disponível em: https://youtu.be/Ededynz0YnU. Acesso em: 17 dezembro 2022. 

Cássia paga os pecados do padre Marcelo e cia. Folha de São Paulo, 17 julho 1999. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq17079907.htm. Acesso em: 17 dezembro 2022. 

ENCARNAÇÃO, Paulo Gustavo da. Rock in Rio - Um festival (im)pertinente à música brasileira e à redemocratização nacional. Patrimônio e Memória, Assis, v. 7, n. 1, p. 348-368, jun. 2011.

ISTOÉ. Com você… meu mundo ficaria completo, com Cássia Eller. 1999. Disponível em: https://istoe.com.br/32983_COM+VOCE+MEU+MUNDO+FICARIA+COMPLETO+COM+CASSIA+ELLER+/. Acesso em: 17 dezembro 2022. 

SANCHES, Pedro Alexandre. Cantora era a maior voz feminina do Brasil. Folha de São Paulo, São Paulo, ano 81, n 26569, 30 dezembro 2001.  Ilustrada, p.A7.

SOUZA, Tárik de. Cássia cospe fogo. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, ano CX, n 281, 14 janeiro 2001. Caderno B, p.4.


Comentários

Divulgue seu lançamento