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A trajetória poética da música

domingo, 19 de dezembro de 2021

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É comum no meio musical dizer que determinado compositor é poeta. Assim ouvimos falar sobre Noel Rosa, Cartola, Chico Buarque, Caetano Veloso, entre outros tantos grandes nomes da Música Popular Brasileira.

A som retirado de objetos antecede a escrita, e é possível que tenha surdido na pré-história, há 60 mil anos atrás, ao encontrar vestígios de flauta feita de osso. A criação literária poética oral antecede a música e estima-se que a essa expressão cultural popular, com elaboração harmônica, melódica e rítmica, tem seu primeiro registro há quase 3 mil anos, num hino mesopotâmico. Ou seja, fazia-se som sem ser música, contava-se versos sem escrita formal.

Apolo, no panteão grego, aparece com uma lira, símbolo das artes e da poesia, sinônimo de Lírica.  Em tempos remotos, poetas mambembes levavam suas companhias teatrais à população como entretenimento e informação sobre as últimas notícias que recolhiam pelo caminho. Os atores, em sua maioria, eram poetas que declamavam seus versos, transmitindo oralmente tradições, histórias, criações, poemas, acompanhados de instrumentos musicais.

Acredita-se que o primeiro poeta tenha sido Homero, que contou oralmente a Guerra de Tróia, nos anos 12 e 11 antes de Cristo. Mas não se tem certeza de que ele tenha existido de fato.

Na África, os sons de percussão misturam-se milenarmente, até hoje, com as tradições orais, nos cantos e contos dos griôs, numa simbiose indissociável. 

No Brasil, a efusiva mistura de ritmos e tradições vindas do velho continente pelos portugueses, os cantos ritualísticos indígenas, as manifestações africanas, fizeram da nossa música algo peculiar: riqueza rítmica e alto teor poético.

Do mesmo modo, poetas mencionaram em seus escritos a expressão musical, Mário Quintana, em tom lamentoso, nos diz o que a música significa para si:

EU OUÇO MÚSICA

Eu ouço música como quem apanha chuva:
resignado
e triste
de saber que existe um mundo
do Outro Mundo...

Eu ouço música como quem está morto e sente
já 
um profundo desconforto
de me verem ainda neste mundo de cá.

Perdoai,
maestros,
meu estranho ar!
Eu ouço música como um anjo doente
que não pode voar.

Inversamente, compositores como Chico Buarque de Holanda, transitam pelo universo literário, musicando poemas como “E agora, José?”, de Carlos Drummond de Andrade, “Morte e Vida Severina”, de João Cabral de Melo Neto. Raimundo Fagner musicou o poema “Traduzir-se”, de Ferreira Gullar, Adriana Calcanhoto musicou o poema “O outro”, do poeta português Mário de Sá-Carneiro, Cazuza musicou o poema “Balada do Esplanada”, de Oswald de Andrade, Caetano Veloso musicou os poemas concretistas de Haroldo de Campos, e assim muitos outros.

Seria esteticamente incorreto nomear o compositor de poeta, pois há, no trabalho de criação poética, um processo muito distinto da criação musical. A fonte, a estética, o conceito, a motivação partem de âmbitos originariamente distintos, embora possa acontecer eventual e casualmente de ser o mesmo. Mas caiu no gosto popular chamar compositor de poeta e, para a Linguística, vale o que é de fato. 

Assim, registro que Drummond é um poeta imenso e que Cartola é um compositor gigante.  Que João Cabral de Melo Neto foi exímio engenheiro da palavra, que nem gostava de música, e que Noel foi um grande engenheiro da composição musical, tal qual Villa Lobos, que não usou as palavras.

Reverencio as expressões culturais de nossa terra Brasil, que reinventa ritmos – na música e na poesia – e absorve grandemente tradições profundas de todos os continentes. Finalizo com esse poderoso verso de Drummond, do “Poema Patético”, em que localiza a música no mundo, fazendo o percurso do barulho – o som cotidiano – até transformá-lo poeticamente na música que nasce dentro do peito:  

POEMA PATÉTICO

Que barulho é esse na escada?
É o amor que está acabando,
é o homem que fechou a porta
e se enforcou na cortina.

Que barulho é esse na escada?
É Guiomar que tapou os olhos
e se assoou com estrondo.
É a lua imóvel sobre os pratos
e os metais que brilham na copa.

Que barulho é esse na escada?
É a torneira pingando água,
é o lamento imperceptível
de alguém que perdeu no jogo
enquanto a banda de música
vai baixando, baixando de tom.

Que barulho é esse na escada?
É a virgem com um trombone,
a criança com um tambor,
o bispo com uma campainha
e alguém abafando o rumor
que salta do meu coração


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