Em Nome do Samba

Com Motumbá, Fabiana Cozza se aproxima dos mestres e mestras que se põe a celebrar

Segunda, 16 de setembro de 2024

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“Uma pessoa está viva todas as vezes que alguém se lembra dela”

Igiaba Scego

Coloco assim, numa percepção muito individual, quase um achismo: Fabiana Cozza está em transição. Explico.

Do início dos anos 2000 pra cá, nossa, quanta água passou debaixo dessa ponte. Marcella, com quem estou casado desde 2011, lembra sempre da Fabiana no Ó do Borogodó, quando era ainda “uma menina” descobrindo e construindo seu caminho na música. Fomos acompanhando os lançamentos de seus nove álbuns nesses 25 anos: admirados pela performance no palco, pelo timbre único, pelas escolhas de repertório. “O samba é meu dom”, gravado por ela em 2004, virou um hino aqui em casa.

É assim: de jornalista a atriz de teatro, alcançando um posto de referência na música brasileira e, de quebra, tem ainda um mestrado em fonoaudiologia com uma abordagem muito interessante sobre a atuação de Linda Wise (atriz, cantora e diretora de teatro) no exercício de “investigar os caminhos percorridos por uma voz em busca de sua singularidade associada à condição biopsíquica”. Quem vem antes, a atriz ou a cantora? Não há resposta, há apenas a constatação de que essas duas forças fundidas sobre o palco são arrebatadoras, o que me faz lembrar demais da história de Mestre Aldo Bueno.

Posto isso, retorno aos meus botões e vejo, emocionado, uma Fabiana em trânsito. Ela está saindo de um lugar de grandeza para o posto da maestria, aquele que é perene. Dentro em breve, muito breve, a ela serão rendidas homenagens, tributos e outras reverências maiores, como queiram. Em breve colherá motumbás de outrem.

O rigor técnico, como já disseram, funciona porque nela também habita uma espécie de introspecção criativa. Fecha-se em si mesma para gerar a pérola.

Suas aparições nas redes sociais trazem o retrato óbvio de um ser que se aprofunda na própria transformação, a buscar sempre essa voz interior, a entender essa condição psíquica que lhe garanta uma unicidade – mais que isso, a lealdade a quem realmente é. Fiel, antes de tudo, a si. Os óculos de grandes proporções e o sorriso terno me trazem de imediato uma energia singular, como se fosse uma película sutil que momentaneamente se desprendeu do espírito, e por meio dela, como se fosse uma lente de grau, eu só consigo enxergar Dona Ivone Lara. Vivíssima, generosa, braços abertos: o colo que o Brasil precisa. Em Motumbá (Edivan Freitas / Marcos Ramos), inclusive, Dona Ivone flutua nos ireoró ileraiá que se aproximam do encerramento da faixa. Quem ousa duvidar? A nossa rainha maior lhe dá guarida constante, Sra. Cozza dos Santos.

Quis o destino que Arlindo Cruz fosse colocado na situação em que hoje se encontra. Ele é um corpo feito de matéria densa, que ainda consta entre nós, carnes, músculos e ossos, mas é um corpo que já não exprime. A voz embotou, encalacrada no meio dos neurônios afetados pelo acidente vascular. A voz não anuncia, não enuncia, não ecoa. Com um quê de prece, eis que Motumbá lhe resgata, lhe estica o braço em meio à escuridão, acende o farol alto na estrada da desilusão. Pois que nessa busca da voz própria, do mestrado acadêmico e do coração que gesta verdade, Fabiana traz à vida aqueles que já se foram mas que pra sempre estarão. O corpo se esfacela na mesma medida em que a alma se eterniza.

Com Motumbá, Fabiana abre os caminhos com o som sagrado dos atabaques e saúda Xangô, pai regente do nosso amado Arlindo. Com Motumbá, “Hoje o mundo canta Madureira, raiz da Tamarineira”. Com Motumbá, Fabiana empunha o cajado ancestral que lhe foi entregue, como testemunhamos em seus shows com Nei Lopes em 2023, e caminha resoluta para a maestria. Uma artista em transição. Uma mestra em trânsito, afinal. Fez do canto uma missão. Que sorte a nossa.

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