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Entrevista com Douglas Germano

quinta, 21 de dezembro de 2023

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“Eu nem sei de nada, não / Minha voz é vento / E eu sussurro tempo / Pra você olhar”

Douglas Germano, Tempo Velho.

Reverências à sabedoria do Tempo, entre monólitos e fragmentos, fomos fazendo um garimpo musical pela obra de Douglas Germano. Eu e meu novo parceiro de pesquisa, o professor Wilson Roberto, nos embrenhamos nas minas de ricas notas e melodias. Entrevistamos o compositor, cantor e arranjador, com escuta atenta para recolhermos as pedras brutas da sua trajetória e lapidamos para o acervo do IMMuB. 

Douglas Germano é um músico e compositor brasileiro, de São Paulo.  Filho de José Germano e Maria José da Fonseca. Nasceu em 1968 na Zona Leste da cidade, e o pai, músico – operário da música -, talvez tenha sido o displicente – não intencional – responsável pelo início dessa imensa aventura bem-sucedida pelos meandros musicais. Entre José e Maria começa a carpintaria musical do menino que brincava com os instrumentos de percussão como brincava com a bola ou o carrinho.

Sobre o pai, Douglas nos conta “Meu pai se virava como podia. Hora no baralho, hora como motorista de praça, hora como batuqueiro tocando em bailes. Mas o que ocorre é que, para atender as demandas, ele estava preparado e tinha em casa vários instrumentos, pois às vezes tocava cuíca, às vezes surdo, outro dia tamborim etc.  Tínhamos muitos instrumentos em casa e eu, na minha primeira infância, tinha-os como brinquedos entre os meus. Era bola e pandeiro, cuíca e carrinho.”

Nas rudezas da vida, autoproclamado um cidadão nascido no lumpesinato, na Vila Matilde, não teve acesso à formação acadêmica.  Sobre sua formação musical, Douglas Germano detalha os caminhos absolutamente triviais que percorreu, “De maneira geral, nada muito diferente da população vítima da cultura de massa.  Nos respectivos períodos, 70, 80, minha infância e adolescência: Agepê, Roberto Carlos, Roberto Ribeiro, Bienvenido Granda, Trio Los Panchos, Martinho da Vila, Clara Nunes, Bezerra da Silva. Isso falando dos discos que tínhamos em casa e que meu pai comprava. No rádio também ouvia o que tocava na época. Nunca gostei de rock.  A música "pop" que me pegou foi a do movimento black music que tocava nos bailes que eu frequentei na adolescência. Predominantemente americana: funk e soul.”  

Da trivialidade do real universo pobre paulista, Douglas refinou seu gosto e, segundo ele, gostar de música o levou a buscar mais música e mais música e, assim, foi encontrando seu espaço de afinidade, compreendendo a necessidade de levar a sério o estudo.  Começa a tocar cavaquinho. Os amigos tiveram papel fundamental, nas trocas de saberes e de revistinhas de acordes.  Douglas ressalta que, ainda que hoje reconheça ‘falhas’ técnicas nas revistas, valeu como aprendizado inicial.

Não posso me deixar levar
Angústia, solidão sem fé
Não quero mais sonhar a pé
Pela madrugada
Vou fazer um samba
Pra cantar num canto qualquer
Esperando o dia raiar

(Trecho de “Pela madrugada”, composição: Carlos Vergueiro e Douglas Germano).

Numa batida à João Bosco, a composição “Pela madrugada” sentencia que “A dança da vida é puro perigo /A roda do tempo não para nunca / A dança do tempo é um desafio”, esse tempo nada linear que vem construindo de maneira sólida a trajetória de Douglas Germano.  

O samba não o classifica nem o define, entretanto, o compositor se relaciona com o movimento social samba, que é sua escola.  “O samba é que me deu estofo e informação para reconhecer e aprender com todos os outros tipos de músicas e com outras formas de arte:  Se você ouvir Elton Medeiros não se assustará com Rachmaninoff por exemplo. Saber de Aldir Blanc, Chico Buarque, Antonio Almeida te aproxima de Manoel de Barros, Drummond e Augusto dos Anjos. Sergio Ricardo, Dorival Caymmi é cinema, é Portinari... Minha porta de entrada foi a do samba dentro de uma quadra de escola de samba e, toda a sofisticação que conheci posteriormente, confirmou a grandeza da minha primeira experiência. Portanto, só não aceito ortodoxia e anacronismos. O que digo sempre é o seguinte: "O samba vai muito longe." Mas não graças aos autoproclamados sambistas. Estes são os mantenedores dos ambientes mais reacionários a que eu tive contato”.

O samba é um ponto de partida, marco zero em sua formação musical, para onde ele volta sempre, ouvindo especialmente Paulinho da Viola dos anos 1970.  

Formou-se ao som das batidas de percussão, no samba e por via das suas ancestrais tradições, rompendo alvoradas e tabus, absorvendo os primeiros caminhos para descobrir todo um universo musical que hoje permeia sua criação, repleta de referências.  

Horizontes que se ampliam para um ambiente musical harmônico, caminhos da escola do Jazz e da MPB, quase que um R&B à brasileira, e declara: “Considero Clara Nunes uma grande sambista, assim como considero também Leny Andrade uma grande sambista. Aprendi, desta maneira, que o samba é algo muito sofisticado. Algo que permite formações distintas esteticamente e isso sempre me interessou”. Douglas une a tradição ao novo, numa permanente pesquisa de ritmos, mistura de gêneros e preciosidades de composição, tanto nas melodias elaboradas quanto nas letras, ora poéticas, ora engajadas e questionadoras – a escumalha que ele traz todo o tempo às nossas vistas, como um “barão da ralé”.

No violão, na levada de baião na música "tempo velho" juntamente com a Afro-levada de partido alto na música "Valhacouto", Douglas Germano desenvolveu uma construção rítmica de estrutura própria, sólida, arranjos elaborados por ele, transformando a obra em arte musical, entre Drummond, Augusto dos Anjos ou num resvalo com a poética melancólica de Nelson Cavaquinho com o afoxé dos estivadores baianos dos anos 1940.

Douglas saiu por muitos anos como ritmista da bateria da Nenê de Vila Matilde, escola de samba paulista, nos anos 1980.  Toca todos os instrumentos de percussão.  É membro da Ala dos Compositores da escola, desfilou algumas vezes e é um apaixonado pela Grêmio Recreativo Cultural Escola de Samba Nenê de Vila Matilde, fundada em 1949, que tem em sua história ícones do samba paulista, como Alberto Alves da Silva, também conhecido como Seu Nenê.

Douglas ganhou notoriedade nacional e internacional ao ter o seu samba “Maria de Vila Matilde” gravado por Elza Soares, que o levou à indicação ao Grammy Latino, concorrendo à Melhor Canção Brasileira. 

Uma canção-denuncia, uma voz feminina num grito de empoderamento da mulher que liga 180 para denunciar a violência do parceiro, a música “Maria de Vila Matilde” faz ferver os olhos de lágrima e revolta, ganhando forma na interpretação visceral de Elza:

E quando o Samango chegar eu mostro o roxo no meu braço
Entrego teu baralho, teu bloco de pule, teu dado chumbado
Ponho água no bule, passo e ainda ofereço um cafezin'
Cê vai se arrepender de levantar a mão pra mim

(Trecho da música “Maria de Vila Matilde”, composição de Douglas Germano)

Para o compositor a criação passa pelo engajamento político, entretanto não obrigatoriamente.  “É importante o posicionamento, muito!  Mas eu não esqueço de considerar que, muitas vezes, uma pessoa procura música para ouvir porque quer se desvencilhar da realidade. E aí teu verso engajado e provocador tem efeito contrário.  É importante ter medida.  A arte atua de várias maneiras. Há o momento do grito, há o momento da leveza, mas fundamentalmente, se você não entregar alguma esperança, não serve pra nada.  Vivo em um país onde milhões de pessoas não têm saneamento básico ainda. As pessoas estão preocupadas em comer. A arte está longe der ser importante nesse contexto”.   

Não tendo sido inserido numa classe social proletária, em sua infância, Douglas ocupa o posto urbano-fabril de um operário da música, conquistando um espaço representativo nessa luta de classes, com o labor da composição e, embora não tenha um único método, considera que o trabalho maior do seu ofício é a lapidação da criação, “É trabalho, artesanato. Como um sapateiro, como um marceneiro, eu diria que como um poeta, cuja criação advém mais do trabalho intelectual, técnico e do suor, que da inspiração. Cuida da concepção estética com preciosismo, “A formação e a variedade na instrumentação são elementos de extrema importância para mim”.

Douglas toca, além de todos os instrumentos de percussão, cavaquinho, violão de seis cordas e estuda violoncelo.  Ouve de tudo, inclusive o que está bombando na esteira da indústria cultural, como uma forma de manter-se atualizado. É o arranjador e faz a direção musical dos seus discos e shows, mantendo uma fidelidade em relação aos músicos que tocam com ele, e destaca João Poleto, que é amigo de mais de 30 anos, e Henrique Araújo. É casado com Tania Batista Viana e tem um filho, o Guilherme Azenha Germano.

Sobre a função da música no processo de transformação do mundo, ele se posiciona, sem deixar a poética de lado, “a arte, de maneira geral, deveria fazer parte da vida das pessoas de maneira igualitária. O capitalismo entrega a uns o que tira de outros. Não se trata de abrir o Municipal numa noite de ópera para levar uma comunidade X ou Y. Não vai acontecer nada além de constrangimento e reforço de preconceitos e separações.  A questão é de classe. Luta de classes. Acabar com privilégios e entregar a todo ser humano o que o ser humano produz de sublime, elementar, importante etc. A arte é uma destas grandezas”.  

A lembrar o poema “Sentimento do Mundo”, de Carlos Drummond de Andrade, uma referência incidental, “Tenho apenas duas mãos / e o sentimento do mundo, / mas estou cheio de / escravos, / minhas lembranças escorrem / e o corpo transige / na confluência do amor.”, Douglas Germano cria uma de suas joias, a música “Lama”, do disco Golpe de Vista.  Mais que um golpe, uma lança que nos incita à luta, levando por vias da arte musical a consciência de transitar nas histórias de vida e morte, real, mas que ainda se apoia na verdade do amor, antagonizando o conceito filosófico, no revés e licença poética permitidos pela criação.  O arranjo minimalista lembra os sambistas que faziam o batuque em caixa de fósforo, ou usando a faca e o prato raiado, num improviso inerente à miséria, transformando o pouco em muito.

Um samba que fale das coisas do mundo
Um samba que ninguém precisa explicar
Há de vir com a simplicidade
De qualquer amor
De qualquer suor
De qualquer dor, dessas de verdade

(Trecho da música “Lama”, composição de Douglas Germano)

Indicações: Grammy Latino • APCA • Prêmio PMB • Multishow

Discografia: A sua discografia começa em 2009, com o álbum feito em parceria com Kiko Dinucci, "O retrato do artista quando pede". Em 2011 lança “Ori”.  Em 2016 “Golpe de Vista”; em 2019 "Escumalha" e em 2021 "Partido Alto", álbum que gravou com o grupo Batuqueiros e Sua Gente, e faz um passeio pelo samba a partir da combinação de 16 músicos de diversos lugares e escolas de samba de São Paulo.  Está entrando em estúdio para a gravação do novo disco, “Zelite”, a ser lançado em 2024.


São Paulo, dezembro de 2023.

Rita Alves e Wilson Roberto

Rita Alves

Rita Alves é paulistana, escritora, historiadora, psicanalista e docente em algumas universidades, em temas como História, Cultura, Música brasileira e Educação Inclusiva. Possui monumentos permanentes de poesia nos parques da cidade, tem 9 livros publicados e recebeu o Prêmio Comunidade África Brasil de Literatura, pelo conjunto da obra.

Wilson Roberto

Paulista, Wilson Roberto atuou como professor de música e tocando na noite paulista, além de fazer arranjos e escrever partituras para registro na Biblioteca Nacional. Teve aulas com grandes expoentes da música, como Mozart Mello, Lauro Alcantarilla e Henrique Pinto.


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