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RAP Paulistano: a expressão política da palavra ritmada

sexta, 10 de janeiro de 2020

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O conceito de cidade é tão mutável quanto a própria cidade, metamorfose social permanente. Os movimentos sociais que permeiam as cidades, especialmente a de São Paulo, a grande urbe, fomentaram ao longo dos anos 80 o surgimento dos narradores urbanos. São eles os integradores e desintegradores do establishment, os propositores da nova/velha ordem, os contestadores e catalizadores, dialeticamente.

O hip hop nasce como esse movimento under, que se constituiu não só como uma expressão, mas como um novo sujeito político na esfera pública do cotidiano da periferia, que migrou intensamente para todos os territórios multiculturais.

A poética do hip hop empodera a palavra como experiência da ideia, a palavra como elaboração do pensamento e mote para a transformação pela provocação, oferecendo nada menos que a realidade em cada verso.

Incorporado como expressão nacional, nasceu nas e das periferias de São Paulo, e tem no espaço público do metrô São Bento, um território de confluência de grupos que extrapolam a música e se expressam pelas vestimentas e pela dança, fortemente.

O rap, como narrativa, é a máxima dimensão do cotidiano urbano excludente. As letras vigorosas são poderes exercitados pela força do verso, da rima, da trama, do desfecho.

O compartilhamento da experiência social precisa elevar o ouvinte, dançante, contestador a entender a ordem política, sugere a subversão às injustiças, grita o canto dos excluídos e das minorias como forma de empoderar.

Alguém aí lembra do Jair Rodrigues cantando “Deixa isso pra lá”, gravada em 1964? O ritmo falado, a letra de protesto pode ser considerada um dos primeiros raps nacionais. Entretanto, um objeto torna-se arte a partir da consciência de que aquele objeto transcende e é obra, portanto, arte.  Não é o caso, pois Charlie Brown e Emicida quem perceberam, décadas depois, a semelhança estética, mas sem o conceito.

Poderíamos então – se assim não fosse – afirmar que os inventores do RAP teriam sido os repentistas nordestinos, em suas narrativas rimadas, provocações e desafios, com forte cunho social.

A consciência de uma nova estética é fundamental para justificar o surgimento efetivo do RAP e estabelecê-lo como uma nova expressão musical.

Poderia escrever páginas sobre cada representação desse movimento, como Rappin Hood, Sabotage, Dugueto Shabaz, Racionais MC’s, Projota... que falarei em outros textos nessa coluna.

Essa introdução mais longa foi para criar justamente uma narrativa que chegasse ao disco AmarElo, do Emicida

Ouvir o disco é uma experiência, ver o clipe é constatar que vivemos tempos de angústias inomináveis, solidões atemporais potencializadas pela exclusão social. A falta de tudo, a ausência de si em cada ação ou inércia, na vastidão de uma geladeira vazia e a janela imensa para o oco do mundo.

Ouvir a voz pastosa narrativa, visceral de alguém que relata a dor de existir antes da música de Belchior, em AmarElo, é quase saltar da ponte que o vídeo mostra. E na voz anasalada do Belchior a explosão de imagens que se imbricam, contrastes, choques, embates, combates, resistências múltiplas e únicas. A estética do belo em confronto com a realidade que se extingue com a música.

Está tudo lá: o mundo-cão e a delicadeza. Revolta, crítica social, a violência do fato e a mobilização no ato do som-voz-palavra. A metamorfose da poesia cantada na força da palavra, em oposição à força física. 

Impressiona a qualidade textual, de imagens, a composição poético-urbana dos cenários da ausência, a contestação ao pré-julgamento.  Emicida arranca das mãos de nós todos o próprio destino (e os que representa), não mastiga, não digere – como fizeram os antropofágicos modernistas – nega, recusa o estigma e soberano proclama “Por fim, permita que eu fale, não as minhas cicatrizes / Achar que essas mazelas me definem é o pior dos crimes / É dar o troféu pro nosso algoz e fazer nóis sumir”, e sedimenta a sua presença de luto, de luta.

Emicida completa o interminável percurso da urbanidade musical paulista – que é o espaço não-geográfico da fome, trafega o caminho dos seus antecessores e joga cacos de vidros e flores para os seus seguidores e sucessores.

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